(Recomenda-se ler ouvindo
Beijinho Doce)
O segredo do tempo é consumi-lo
sem percebê-lo.
É fingir-se infinito para não o
vermos passar
É fazer-se contar em anos em vez
de momentos
(...)
Se esconde nas sombras que se
movem
Nos objetos que não mais servem
Nas pessoas que nunca mais vimos
Na podridão das frutas que não
foram colhidas
Nas lembranças já esquecidas
Revela-se nas fotos que se
desbotam
Nas cartas que amarelam
Nas crianças que crescem
Nas rugas que aparecem
(Paulo Esdras)
Com ajuda da parteira, Dona
Merenciana, meu pai nasceu em Major Gercino no dia 16 agosto de 1936, de parto
normal. Primogênito de Benta Maria Loz e Sebastião José da Cunha, foi batizado
José Sebastião da Cunha. Desde muito criança, o pequeno José Sebastião já mostrava
pouca ou nenhuma inclinação à lida da roça. Por certo que havia puxado ao pai
Sebastião José, segundo dizem os tios. Vale dizer que o sustento da família era
garantido justamente pelo plantio de milho e fumo e pelos animais que meu avô
criava e caçava.
O desapego àquela vida
tipicamente agrária marcaria o destino do meu pai.
O vírus da modernidade
que o mordeu e marcou indelevelmente seu segundo nascimento, o psicológico,
manifestou-se quando da queda de um avião em Major Gercino, então distrito de
Tijucas-SC. O ano era 1945 e, obviamente, eu ainda não havia nascido. Não fui
testemunha ocular da história. E aqui, antes de
continuar, cabe fazer um mea-culpa: conto a história porque me confiaram
a tarefa e porque a mesma me foi contada pelo próprio pai e pelos tios. Como
os fatos, todos, me chegaram
fragmentados, conjugados com minha pouca memória, podem resultar em parágrafos
com fumos de fantasia e em alguns nomes trocados. Portanto, fico desde já eximido de qualquer
acusação ou pensamentos maldosos dos leitores mais apegados ao real. Estes
devem cobrar verdade única dos contemporâneos do meu pai.
Estavam no pátio da
escola, entretidos em brincadeira de roda, a professora Edite e seus alunos
quando ouviram e viram o estrondo e a fumaça quase bem preta que se levantou lá pros lados do Tereré. A
escola era como aqui e o Tereré como lá no Barracão, só que bem depois da
igreja. Com medo daquela coisa que caíra
do céu, alguns alunos e a merendeira deixaram a cantoria de lado e
seguiram para o morro do Rio do Alho, em sentido oposto; os mais destemidos e a
Edite foram ao Tereré movidos pela curiosidade de ver no chão, expostos, os
fragmentos de um mundo até então desconhecido - numa época em que não existia
luz elétrica por aquelas bandas e que as pessoas eram assombradas pelas bruxas
e demônios da cultura açoriana, aquele acontecimento era algo espetacular. O
mundo girava como atualmente, sim, só que em branco e preto, como atestam os
filmes e as fotografias antigas.
Quantos já viveram a
experiência de receber Deus por uma fração de segundo? Muitos, acredito. O
certo é que a quem já aconteceu é impossível deixar de seguir Sua trilha, ainda
que inconscientemente. Judeus morriam na Alemanha no instante exato em que o
aluno José sentiu Deus imenso ao olhar os destroços espalhados no chão. Seria
possível consertar aquilo tudo? Ajeitar o desajeitado? Ajustar o desajustado?
Não havia resposta, mas estava plantada a semente do futuro profissional.
Aos sábados, os colonos
vindos do Tijipió e do Garcia chegavam em Major Gercino pra fazer as compras na
venda do Augustinho Laurindo, meu futuro avô materno. O som das carroças e dos
carros de boi compunham a música que embalava aquelas manhãs ensolaradas.
Enquanto os pais compravam o querosene que abasteceria as pombocas, mais o sal,
o trigo, o açúcar e o arroz, os miúdos de rosto vermelho e nariz escorrendo iam
assistir ao meu pai, agora chamado Keca, saltar da ponte no Rio Tijucas. Ele
foi exímio saltador. A ponte era coberta, igual a nossa Engº Emílio Kuntze, só
que de vão e altura bem maiores. - "Era lindo à beça de se ver", ainda dizem os que
tiveram oportunidade de assistir.
Ana era a terceira filha
de Bernardina, a Dica, e Augustinho Laurindo. Fazia o pão e a polenta, o feijão
e o pirão preferidos dos pais. Daí ser ela a predileta da cozinha. Estudava e
não fugia ao trabalho doméstico ou da roça, mas o que gostava mesmo era de
remar pelo Rio Tijucas. Achava o Keca da Benta um tanto quanto exibido, alguém que "vivia
se aparecendo pros outros”, contava sorrindo.
Inaugurada em 1960, a
construção da Usina Hidrelétrica Garcia movimentou muita mão-de-obra em
Angelina e região. As noites brancas, clareadas pela eletricidade, deixavam entrever o futuro e
eram as mais sólidas representações de que o mundo moderno estava chegando. O
pai arranjou o primeiro emprego. Me disse que trabalhou pesado por dentro de
canos aonde "cabiam dois homens em pé, um em cima do outro, e ainda
sobrava espaço pra uma cabeça. Das grandes, meu filho!". Sua mão-de-obra
não era especializada, daí o salário exíguo a que tinha direito. Ainda assim,
fato importante, aprendeu a profissão de soldador e conseguiu comprar uma
bicicleta usada.
A bicicleta era vermelha.
Tinha varão, sineta, farol, fitas que escorriam do guidão e uma capa de assento
do Fluminense-FC rodeada por pequenas tranças alternadas, verdes e grenás.
Naquele final de semana,
já torcedor eterno do time carioca, o pai descambou pro Major Gercino,
pedalando. No meio do caminho, altos do Morro do Garcia, parou na figueira que faz vezes de gruta e
fez promessa de casamento com a Ana. Rezou o Santo Anjo e desabalou morro
abaixo na velocidade do amor e da felicidade que o aguardavam.
Os sábios que desculpem
minha santa ignorância, mas quem é capaz de explicar o destino? Naquele sábado,
na hora da Ave Maria, a Ana da Dica foi passear no Tereré, ver os restos já
enferrujados do avião caído. Por seu turno, o pai foi visitar a tia Olga,
também no Tereré. Ele de bicicleta, ela de canoa. Não sabiam um do outro,
sério. Encontraram-se sobre a grama, sob o sol. Protegeram-se no sombrio
refrescante das árvores. Ah, a beleza, a juventude, o desejo e o beijo no rosto
- no rosto, sim, porque minha mãe não beijava na boca de jeito nenhum. -
"Nananinanão", argumentava muito seriamente. Aos abraços, selaram a
promessa de viverem juntos pra sempre.
Enquanto isso, ali perto, o rádio da tia Olga tocava o Beijinho Doce.
E foi assim que o pai
jurou amores à figueira dos milagres e, por analogia, começou a também torcer
por um certo time pequeno.
Minha mãe era solteira
quando engravidou do primeiro filho. Como a situação econômica do casal era de
amargar, esconderam a notícia das respectivas famílias o quanto puderam,
esperando por uma melhora financeira que nunca veio. Jurando voltar ao Major
pra buscá-la, sem escolha o pai deixou a Ana com um problema familiar e um
filho no ventre. O problema do pai, porém, não era menor: urgia conseguir os
meios pra sustentar a família recém iniciada. Sem destino definido, partiu de
carona num FNM que seguia levando mercadorias do litoral para a serra. Arranjou
emprego em Urubici numa pequena oficina de automóveis, na Esquina, aonde se
estabeleceu. O ano era 1958.
A Dica foi o tipo de avó
modelo para todas as outras avós que já existiram, existem e ainda vão existir
neste mundo. Sem educação escolar, inventou símbolos alfa-numéricos com os
quais gerenciava as demandas da Venda do Augustinho. Quando andava parecia
flutuar, como convém a todas as avós-bentas, pra dizer o mínimo. Era dona de um
caráter que jamais abandonaria ao destino uma filha tão amada quanto a Ana e o
filho recém-nascido.
“O Rio Tijucas era fundo,
/ agora ele é baixo./ Todo mundo tem os seus amores/ só eu procuro e não acho.”[1]
O pai, já apelidado
Juquinha, voltou ao Major Gercino em 1960 cumprindo o que prometera. Quando
encontrou-se pela primeira vez com o filho, o Cunha contava dois anos e estava
naturalmente incorporado aos Laurindo - dizem que graças às intervenções da
matriarca que soube curar com ternura o coração ferido da família.
Meus pais casaram-se às
pressas, quase em segredo. Depois, contra a vontade dos Laurindo que a esta
altura não mais queriam separar-se do pequeno Cunha, partiu a família para
Urubici aonde uma casa bastante pobre os aguardava - a mãe levava uma mala, o
pai um saco de linhagem com alguma comida. O Cunha, de beiço comprido e cara de
choro, segurava com força a barra da saia da mãe – mais pareciam retirantes,
personagens de Graciliano Ramos materializadas na poeira da estrada - “Por que
existem uns felizes / E outros que sofrem tanto? / Nascemos do mesmo jeito /
Vivemos no mesmo canto. / Quem foi temperar o choro / E acabou salgando o
pranto?”[2]
Nunca souberam que a origem do nome Urubici é
Kaigang e que significa "mãe das águas frias". Para os meus pais
significava aprendizado, bons vizinhos, pouco dinheiro, asma e águas muito, mas
muito frias mesmo. Aliás, penso muito seriamente que foi em Urubici que a asma
começou a desinventar o meu pai.
Valdete, minha segunda
irmã, nasceu em Urubici. A cidade era hospitaleira e o casal, agora com dois filhos,
cultivou amizades que extrapolaram o tempo em que lá viveram. Porém, se o
ambiente social os acolhia, o clima frio e a umidade, tão nocivos às doenças
pulmonares do pai, os repelia. O patrão, dono da oficina, pediu: - “Fica!”, –
“Me queira bem que não custa nada”, teria respondido o Juquinha quando resolveu
partir.
“No pain, no gain”,
pensou o pai, só que em português - era preciso arriscar, precisava ganhar mais
dinheiro para o conforto da família e principalmente respirar ares mais amenos.
Em 1962 desembarcaram em Alfredo Wagner com todos os pertences: uma mesa,
algumas cadeiras, uma caixa com os utensílios de cozinha, uma bateria de
pendurar panelas, o fogão à lenha e a mala de roupas. Ah, também tinha uma
máquina fotográfica que fez história – meu pai era moderno, como já disse, e gostava de registrar os
momentos em família. A mudança foi feita de caminhão e segundo o Santo Luca,
dono do caminhão, “não deu lá muito trabalho, pois se o Juca não tinha quase nada!!”.
Alugou uma pequena
garagem nos fundos da Oficina Mecânica São Cristóvão, de propriedade do Lauro Cechetto, e ali estabeleceu sua própria oficina de lataria e pintura de automóveis. Começava assim a história do Juquinha e da nossa família em Alfredo Wagner.
Aqui nasceram os demais
filhos. E, coincidência ou não, no mesmo dia em que nasci as mulheres saíam às
ruas nos Estados Unidos lutando por mais dignidade e direitos sociais.
Simbolicamente, queimaram os sutiãs. Não que eu queira me gabar.
Juquinha e Ana já
partiram para o lado de lá, deixaram sete filhos e um só legado: a oportunidade
de acesso ao conhecimento - motivo de orgulho para ambos até o final.
Atualmente, quando nos encontramos em reuniões de pão e vinho (mais vinho do
que pão), filhos, genros, noras, netos e bisnetos, no mais das vezes
reverenciamos o José, reverenciamos a Ana. Mantemos viva a história e
consolamos nossos corações na lembrança daqueles tempos de lares de mãe.
Meu pai não fez fortuna,
e no entanto tornou-se muito popular desde Bom Retiro até Ituporanga por conta
da sua oficina de chapeação. Única nestas redondezas por longos anos. Quando a
oficina ficou pequena e os filhos ficaram grandes, ele arriscou-se em novos
negócios. A família morava no Barracão, em frente ao Seu Nelinho, na casa que
mais tarde pertenceria à Dona Petronilha. O
sonho era mudar-se para o Sombrio, e quando a oportunidade surgiu ele a
agarrou com unhas, dentes e dívidas. Comprou um bar e um terreno na Rua do
Comércio. O primeiro ladeava o perau do morro do ginásio, atualmente Bar do
Anjinho, e os negócios eram tocados à força de pastel, café e cachaça feitos e
servidos pela mãe e pelos irmãos mais velhos. O posto de gasolina Atlantic,
logo à frente, era gerenciado pelo Seu Ascendino Cunha. Já o terreno, do outro
lado da rua, se estendia até o rio e abrigava uma casa grande, com ares de
sobrado, e uma oficina novinha em folha.
Aquela Empire talvez não
tenha sido a primeira de Alfredo Wagner, mas com certeza foi a primeira
televisão pública da região. No dia 21 de junho de 1970 o estádio Azteca recebeu
cerca de 100.000 pessoas pra ver a grande final da copa do mundo do México.
Simultâneamente, em Alfredo Wagner, mais de 100 pessoas se acotevalavam no Bar
do Juquinha pra ver as jogadas geniais de Pelé, Tostão e Gérson.
Meu pai foi um homem à
frente do seu tempo até nas doenças sob as quais convalesceu, exemplo disso foi
a famosa crise nervosa de 1972. Fosse hoje e o pai teria sido diagnosticado com
síndrome do pânico, na época passou por alguém excessivamente nervoso que
precisava “repousar em casa especial”. O que queria dizer, em outras palavras,
que ele estava beirando a loucura e precisava ser afastado da sociedade por uns
tempos. Exageros da medicina da época, claro.
Em meados de 1972 nossa
vida seguia dividida entre o sucesso do bar e os nervos escangalhados do pai. O
dinheiro entrava graúdo e a dívida estava controlada, quase quitada. Minha mãe
continuava fritando pastéis enquanto o pai, entre uma crise e outra,
desamassava, lixava e pintava os automóveis e caminhões da época. O Seu
Ascendino, por sua vez, tinha cheiro de óleo diesel e gasolina. Foi por esta
época que o Bento Bandeira jurou que ia explodir o posto de gasolina, vingando
um prato de comida que ganhara sem um “miche pedaço de carne. Será o Benedito?”
- vocês que menosprezam o medo que tínhamos daquele andarilho barbudo vindo
sei-lá-daonde, perguntem às pessoas com mais de 60 anos, àqueles que se
disporem, quem era o tal Bento Bandeira. Pensem num homem irascível, tão brabo
que até hoje ninguém gosta de tocar no assunto. Isto é muito sério.
Meu pai associou o mal
dos nervos ao bar e às incomodações dele advindas. A despeito dos sucessivos
aconselhamentos contrários, o pai vendeu o bar como quem compra uma aspirina
pra curar a gripe. Em 1973, para o Sr. Ivo Schmitz. Foi aí que nos mudamos de
vez pra casa do outro lado da rua, aquela com ares de sobrado.
Paradoxo: “a única
verdade absoluta é que não existe verdade absoluta”. É preciso relativizar
todos os valores, sociais e históricos, materiais e científicos. Por isso
respeito a casa de todas as famílias, só que, com profunda humildade, ouso
dizer que a nossa foi a melhor de todos os tempos e lugares. Era como casa de
madrinha, grande, de dois andares. Tinha fogão à lenha, escadas, varandas e
vários cantos secretos a serem explorados. O quintal era lindo pra dedéu, com
pereiras e uma parreira de uvas grande assim! Pé de laranja não tinha, mas
estas a gente pegava no pé alheio, da vizinha.
Falando nisso, acabei de
lembrar que jamais paguei, nem agradeci, os quase 10 sacos de laranja açúcar e
umbigo que peguei emprestado. Assim, aproveito este espaço de memórias pra
registrar meu mais profundo agradecimento: Obrigado, Dona Cândida May, pelo
carinho e pelas laranjas.
A relação de meu pai com
os cachorros de Alfredo Wagner nunca foi das melhores, definitivamente. Os
cachorros mais ilustres da cidade, conhecidos pela ferocidade, sem exceção
morderam o pai. Assim foi com o Saldanha, o Conhaque, o Rintim e o Shark. E até
o Chipel, meu saudoso vira-lata que morava um dia com a gente e dez no mundo,
jamais deixou de rosnar sempre que o via.
Meu pai passava horas,
dias e noites, inverno e verão, sob e sobre carros, trabalhando sem parar. Seu
lazer resumia-se a pescarias com os amigos – ele adorava pescar - e um que outro baile no interior embalado por
algumas cervejas. É inegável que meu pai se apaixonou por Alfredo Wagner. O
trabalho era árduo, sim, mas a comunidade dava em troca sustento, amizade e o
estudo dos filhos que ele tanto soube valorizar. Contudo, seu ímpeto de
modernidade às vezes contrastava com uma certa melancolia que o invadia sempre
que seu querido Major Gercino vinha à mente. Daí ele rezava o Santo Anjo.
No final da década de 70,
início dos 80, o pai construiu estufa e reativou as roças de fumo no terreno
que pertencera ao Vô Bastião, seu pai, em Major Gercino. Porém, por mais
esforço que meus tios agricultores fizessem, a tal roça não aguentou mais que
três safras seguidas. Nesta época as viagens entre uma cidade e outra eram
constantes, sempre que a saudade apertava ou os negócios exigiam. Pra terem uma
idéia, em 45 anos de Alfredo Wagner meu pai visitou a Vó Benta 225 vezes,
visitas contadinhas uma a uma nos dedos da mãe.
Os nervos foram
controlados, a asma não. Meu pai tentou todos os meios e medicamentos, desde os
ortodoxos oferecidos pela alopatia e pela homeopatia até bizarrices como
gordura de tatu derretida, gemada de ovo de lagarto e garrafadas indígenas
vindas do Mato Grosso e do Amazonas. A cura foi sempre paliativa, nunca
integral e definitiva.
Entendo que
Alfredo Wagner está situada nos limites da identidade. Neste sentido, as
demandas trabalhistas são resolvidas em Rio do Sul, as educacionais em
Florianópolis e as jurídicas em Bom Retiro. Convivemos com culturas tão
díspares quanto a alemã, a italiana, a gauchesca e a açoriana. Alfredo Wagner
não está inteiramente localizada na serra, nem no litoral ou no alto vale. A
diversidade religiosa é flagrante. Nosso
ambiente natural não é purista, ainda bem, e nossa identidade
caracteriza-se por um certo instinto de não-identidade, pela mistura. Pra isso,
como muitos outros cidadãos da época, o pai colaborou um tantinho acrescentando
ao caldeirão da gênese alfredense o que ele tinha de melhor: o olhar voltado
pro futuro, o instinto de modernidade, a fala litorânea, uma faísca de cultura
açoriana e sua bondade imensa.
Naquele primeiro final de semana de
outubro de 2007, peguei o pai na Rita Maria, vindo de Alfredo Wagner, e fomos
visitar a Vó Benta e a Tia Olga. Seria a última vez. Durante a viagem, o pai me
foi contando histórias daquelas casas antigas à beira da estrada, dos engenhos
de farinha do Arataca, das oficinas de tamanco. Ríamos. Ele tossia muito por
causa da asma que se anunciava forte. Senti orgulho de estar ao seu lado
naquele momento em que a emoção mostrava-se à flor da pele, e não outro filho.
Ao chegar no Major Gercino, rezamos o Santo Anjo no túmulo do Vô Sebastião - o
Keca renascia naquela terra e ele já não era meu pai, era um menino amigo meu.
A visita foi como de costume, o pai abraçou a Vó Benta e ela derramou uma
lágrima secular, a lágrima de saudade tantas vezes repetida sempre que ele
chegava - "passa pra dentro, vem comê!!". Passamos.... e comemos. A
despedida foi marcada por uma fotografia significativa. Nela ficou registrado o
adeus de meu pai à sua mãe, o instante de um aperto de mão e de um sorriso
cúmplice. Assim como quem nunca mais vai voltar, assim como quem diz "até
breve, minha mãe".
Uma semana depois,
asmático, o pai entrou na ambulância parada em frente à nossa casa. Chamou
minha irmã e chorou miúdo consciente de que a internação no Hospital Regional
Alto Vale, em Rio do Sul, seria definitiva: - "Sempre soube que ia morrer
antes da Ana. Cuida da tua mãe!". Faleceu em 27 de outubro de 2007.
Quem garante que na
viagem não pensou no grandioso hotel que não teve tempo de construir na
barranca do rio? No cultivo de flores que nunca aconteceu? Na viagem de avião
que jamais realizou? A vida passa num segundo. O que se planta permanece por
gerações.
valdir cunha, junho 2013.
ORAÇÃO[3]
Ele morreu, Senhor,
Seja José a criança, o mais
pequeno.
Pega-o Tu ao colo
E leva-o para dentro da tua
casa.
Despe o ser cansado e humano
E deita-o na tua cama.
E conta histórias, caso ele
acorde,
Para o menino tornar a
adormecer.
E dá-lhe sonhos teus para ele
brincar
Até que nasça qualquer dia
Que Tu sabes qual é.
28 Comentários
Parabéns ao tio Valdir pela bela história. Mesmo sem conhecê-lo, admiro-o por ter sido um grande pai e avô.
ResponderExcluirObrigada Carol, por expor em seu blog, pessoas que foram importantes para várias pessoas.
Beijos.
Que história bonita! Diante de tantos problemas e dificuldades conseguiu formar uma familia linda e unida! E, parabéns ao Valdir Cunha pelo dom que tem com as palavras! Impossivel não se emocionar...
ResponderExcluirParabens ao tio Valdir pelo belo texto, e a Carol, por essa bela ideia de expor historias de grandes pessoas. Fiquei impressionado com as historias de meu avo, muitas desconhecidas, e fico feliz por conhece-las. Parabens ao grande Juquinha e a grande Dona Ana, se estamos hoje aqui é por causa dos grandes esforços e das grandes conquistas que essas duas pessoas realizaram.
ResponderExcluirHistória muita linda e emocionante.Meu irmão relatou fatos que nem eu mesma conhecia sobre meus pais e de uma maneira que me despertou risos e ao mesmo tempo lágrimas.
ResponderExcluirParabéns aos professores pela brilhante iniciativa de valorizar as pessoas do nosso município.
Vera
Fiquei emocionada...parabéns tio Valdir, você me apresentou um pouco mais sobre a história do vô e da vó e pude admirá-los ainda mais!
ResponderExcluirElisa.
em agosto de 1983 aconteceu algo engraçadíssimo: morreu o bento bandeira.
ResponderExcluirvaldir
Valdir, o que significa esse texto??? sério...tô com os olhos mareados. Lindo......mas vou relê-lo com mais calma e tempo...ouvindo "beijinho doce"
ResponderExcluirGianini Bratti - Nova Veneza/SC
Que lindo Valdir! adorei o texto...a doçura e a sensibilidade combinam com o lugar que nos identifica!!!!Fico pensando: o Barracão tem esse estranho poder de despertar um sentimento de contemplação poética!!!!! Talvez seja uma conjunção de astros e cometas! Talvez seja apenas a manifestação de saudade do tempo que já se foi!!!!! Enfim, felizes de nós que temos memórias!!!!!
ResponderExcluirBj e obrigada por compartilhar!
Denize Lucena Zacchi - Fpolis
Valdir, o que significa esse texto??? sério...tô com os olhos mareados.....preciso me recompor! Lindo......mas vou relê-lo com mais calma e tempo...ouvindo "beijinho doce"
ResponderExcluirGianini Bratti - Nova Veneza/SC
em agosto de 1983 aconteceu algo engraçadíssimo: morreu o bento bandeira!
ResponderExcluirvaldir
Que linda história, Valdir! Como escreves bem! Não posso sair agora para o restaurante porque estou com os olhos umedecidos, e também com um sorriso, porque tuas palavras comprovam que a beleza está na simplicidade, e que o amor é o que fica para sempre... Parabéns, amigo e irmão de jornada nesta Terra!
ResponderExcluirTeus pais estão felizes em outra morada dos nossos Pai e Mãe do Céu!!!
Stella Kutne - Fpolis/SC
Como diria meu padrinho querido: "Sensacional..."
ResponderExcluirMe fez chorar aqui no cliente... claro que no BW...
:-)
Um abraço apertado!
Alexandre Rudolfo, Curitiba
Sinceramente, me vi nas cenas tamanha a realidade descrita. Linda história, belo texto, muito bem escrito. Parabéns Valdir... (chorei um pouquinho).
ResponderExcluirMárcia O. Becker de Aquin
Imbituba/SC
Sinceramente, me vi nas cenas tamanha a realidade descrita. Linda história, belo texto, muito bem escrito. Parabéns Valdir... (chorei um pouquinho)
ResponderExcluirValdir, sempre soube do seu dom de escrever, eis a prova de que deves continuar estas linhas e ensaiar um livro.
ResponderExcluirÉ muito bom e importante compartilhar lembranças, ainda mais quando são de nossas historias.
Parabéns, vi as cenas e cenários aí descritos e senti a emoção das palavras.
Um grande e forte abraço...
Déia da Marlete de Joinville, filha da Terezinha, irmã da Ana.
Oi,
ResponderExcluirnossa, que história linda, tava fuçando na internet. eis que deparei com esse blog, e justo nessa página, resolvi ler, e ADOREI!!!
Me fez lembrar as histórias que meu pai conta, só que no interior de SP...
Parabéns ao escritor!!
OLA TUDO BEM.
ResponderExcluirQUE SAUDADE DESTA TERRA.
ONDE CANTA O SABIO
E A GENTE BÉBE E RI SEM PARAR.
Dilson Clasen
Pô Valdir vcs pegaram pesado em meu.... Li fiquei emocionado e chorei.
ResponderExcluirAcho que ninguém tinha mais pavor do Bento Bandeira que a nossa família pois uma vez a mãe teve que jogar água quente nele p/ se defender.
Quanto ao Juquinha pode encomendar uma pesquisa do IBOPE e veras que ele nunca teve inimigos e todos gostavam dele.
Hoje vou tomar uma cervejinha e uma pinguinha em homenagem a ele quando nos encontrarmos de novo (quem sabe na ressacada) vou te contar umas historias de uma pescaria que fomos no Rio Grande Do Sul e o Juquinha foi junto (só pra rir e se contar pra quem não conheceu ele não vai achar graça).
Ah, lembro que a Valdete ficava brava quando tirava 9,5 e eu o Dico e o Micaca fazíamos a maior festa quando tirávamos 7,0 que era a média pra passar.
Abraço.
Pirão Heidersheidt
Será que sempre que eu ler vou chorar?
ResponderExcluirFazia tempo que eu não lia um texto tão lindo! Falar de uma pessoa que já falaceu não é tarefa fácil, mas o Valdir conseguiu passar toda a emoção e o sentimento de nostalgia. Não tem como não querer ter conhecido o seu Juquinha.
ResponderExcluirAline
Meu querido amigo,
ResponderExcluirobrigada por nos proporcionar um texto tão lindo que mostra a história de vida de teus pais.
Me emocionei, nao tem como.
Imagino o que deves ter sentido ao escrever/reviver essa história.
E que pessoa teu pai, hem! Já tinha uma câmera fotográfica naquela época.
E o pânico? Como é que pode?
E a avó materna, maravilhosa! Cunha é o mais velho, então?
Ah, obrigada!
Nani Kalk
Nossa Valdir, que linda história... emocionante!!!!
ResponderExcluirNa condição de professora de literatura, achei o texto muito rico, tão rico que pode ser explorado pedagogicamente em aulas de história, literatura e interpretação textual. Afinal:
ResponderExcluir1. Faz referências a história mundial (2ª Guerra e movimento feminista nos EUA); 2. A história não se permite enquadrar em apenas um gênero. É documento histórico? É fábula? 3. Se o autor avisa, ainda no início da narrativa, que tem pouca memória e que não acredita em verdades absolutas, é possível afirmar que é tudo fantasia? 4. Uma discussão fértil em aulas de literatura são as citações que vão desde autores canonizados (Paulo Esdras e Fernando Pessoa), passando por poemas da cultura popular, até falas e referências a objetos da época. O que é uma pomboca? E uma bateria de pendurar panelas? 5. Em determinado momento, o autor pensa a gênese da sua cidade. O parágrafo pode ser refletido/discutido em uma aula de filosofia ou sociologia. Quem sou eu?
Fora o jeito de narrar. Já não sei quem eu desejaria conhecer: o objeto da história (Sr. José Sebastião da Cunha) ou o autor. Parabéns aos proprietários do projeto. A estes solicito autorização para utilizar o texto em minhas aulas, desde que respondam positivamente este comentário. Obrigado.
Edna Silveira Gostebring – Niterói/RJ
Oi Edna, qual seu e-mail?
ResponderExcluirFaltou dizer o quanto ele gostava de cantar a música isto é a felicidade... e como nestes momentos ele mostrava o quanto feliz e otimista ele era, apesar de todas as dificuldades da vida daqueles tempos.. Saudades do "Seu Juquinha e da Dona Anna"
ResponderExcluirHélia
Não conheci o "seu Juquinha e nem a dona Ana" mas conheço o Valdir, e como dizem os mais sábios "a fruta nunca cai longe do pè".
ResponderExcluirO Valdir, com seu carisma e simplicidade, só podia ter recebido uma educação oriunda de pessoas do bem. Assim como o seu Juquinha nunca teve inimigos, o Valdir só coleciona amigos em todos os meios por onde circula.
Só gostaria de deixar aqui uma dúvida.
Valdir, será que estes fatos não se passaram em Lomba Alta, e por imaginação foram transportados para Alfredo Wagner? Rsrs
Parabéns pelo texto meu amigo, para ti desejo sempre o melhor.
Luiz Garibaldi
Magnífico comentário do Eterno Juca de guerra, meu vizinho querido... Chorei ao ler e deixo o registro de que ele também faz falta pra nós não familiares, sempre sorrindo e brincando.
ResponderExcluirParabéns ao Valdir por se referir intrinsicamente de uma maneira toda toda do seu Juquinha, lindo lindo lindo.
Parabéns ao Valdir e à dona do Blog também, Carol, por possibilitarem esse contato com valores, histórias, aventuras, encontros e partidas, que tocam e emocionam mesmo quem não conheceu o protagonista dessa biografia. E... só pra eu não esquecer, tava cantarolando hj umas músicas de seresta, aí lembrei do texto, por causa do "beijinho doce" ao fundo da leitura... vez em qdo eu canto umas, então foi fácil e inevitável imaginar a trilha musical da biografia do "Seu Juquinha".(vez por outra, a gente canta numas festas essas músicas antigas, e sempre é mto legal, os senhorezinhos e suas "damas" dançam, e ficam alvoroçados, ambos, eles e elas, é adolescência total, é um barato!) obrigada pela lembrança dessas canções.
ResponderExcluir