Por Carol Pereira
Sandra Regina de Mello
Data de nascimento: 21 de Maio
de 1932
Data de falecimento: 11 de julho
de 1996
Como já dizia o grande Amós Oz: “A gente vive até o dia em que morre a
última pessoa que lembra de nós.” Sendo assim, meu avô permanece vivo dentro do
coração de todos que o amaram. Pode ser um filho, um neto, um bisneto ou um
admirador, mas viveremos através da lembrança dele. Só quando essa pessoa morrer,
a última que ainda lembra de nós é que morreremos em definitivo, para sempre. Estaremos
tão mortos como se nunca tivéssemos existido.
José Lino de Mello, o Zé Gonga ou simplesmente meu vô Zé, durante
muitos anos foi meu primeiro pai, meu primeiro amigo, meu mestre, incentivador,
inspirador, meu grande herói e a fonte de muitas de minhas alegrias.
Convivi com o vô Zé por apenas 9 anos, mas muito do que sou hoje devo à
ele. Foi ele quem me ensinou matemática, quem me contou tudo sobre os bugres
que habitavam nossa cidade, me fez dirigir a pick up amarela em seu colo até o
sítio da Água Fria (Pedra Branca), deixou eu esconder minha cabeça dentro de
sua jaqueta na hora da cobrança do Baggio na final da copa do mundo de 1994 e
me deu um abraço apertado na hora da vitória, além de fazer eu me apaixonar por
viagens. Contou-me tudo sobre as tradições do nordeste, as dificuldades de se
dirigir por Minas Gerais e também sobre o quão surreal era a cidade do Rio de
Janeiro e a vista tida de cima do Corcovado. Desde a mais tenra idade eu fui
incentivada por ele a conhecer o mundo.
Na condição de neta preferida (sim, sou eu) contarei à vocês sobre esse
homem, que foi um dos pioneiros nos transportes realizados com caminhões em
nossa cidade. Farei uso para isso, de um texto escrito por minha mãe, que como
todos sabem é metida a poeta, logo, não reparem na forma romantizada da qual
ela faz uso em certos trechos.
“A história de vida de José Lino
de Mello, como a história de todos, teve início bem antes dele nascer. Ele é
descende dos primeiros moradores da Pedra Branca, comunidade próxima a Lomba
Alta, lugar alto e frio, mas com uma paisagem esplendorosa.
Vó Lalica, sua mãe morava por lá
em um terreno com casa e muita terra a ser cultivada. Ela com 30 anos de idade
ficou viúva, com 4 filhos para criar. As condições financeiras da família não
era das melhores, pior que isso, era preocupante... e o pai de Lauricia achou
que ela deveria se casar novamente com um homem que recentemente também tinha
enviuvado. E assim se fez! Ela casou-se e a família continuou a crescer.
Foi no mês de maio, exatamente
aos vinte e um dias, ao entardecer de um dia de sol sem nuvens, com um clima
bastante agradável que Dona Laricia Kalkmamm, mulher de Manoel de Mello – um
descendente de açorianos - deitada em
roupas de cama simples, em um colchão de palha batida, começou a sentir as
primeiras dores. Seu marido calçou as botas, deu uma volta ao redor da casa,
pegou os arreios, encilhou o cavalo e aos galopes pegou o trilho que o levaria
em busca da parteira, que morava na comunidade de Lomba Alta.
Lauricia escutava ainda a marcha
rápida do cavalo em cima das touceiras de capim descendo o morro em busca de
ajuda, quando as contrações começaram a ficar muito fortes e José veio ao mundo
sozinho e com sua mãe. Quando Manoel retornou encontrou a mulher e o filho, já
nascido, logo a parteira arregaçou as mangas para atender o bebe.
Um belo menino chegara: bochechas
vermelhas, boquinha rosada e olhos bem azuis parecendo o céu. Assim chegou José
Lino de Mello ao mundo de forma independente, o que mais tarde seria um ponto
alto em sua personalidade, não esperava por ninguém, o que tinha que fazer era
feito, sem ter que necessitar de ninguém.
Cresceu ali naquela mesma casa,
com seus irmãos e desde menino já mostrava características de uma criança, forte,
corajosa, que não pestanejava e fazia frente a todos os obstáculos que
apareciam...
Para estudar tinha que andar uns
3 km no meio do mato por uma trilha. José tirava o calçado, colocava dentro de
uma bolsa plástica, arregaçava suas calças bem até em cima para não molhar e
pisava na geada branquinha que dava estalinhos com o solado de seus pés,
andava, e dizia ele que repetia a tabuada até chegar na escola, pois a
professora queria tudo na ponta da língua. No caminho tinha um córrego com o
nome de Cocho d’água, ás vezes chegava ali e tinha que voltar pois estava cheio
e não conseguia passar, outras vezes atravessava mas molhava as calças mesmo
arregaçadas. Ia para escola assim mesmo.
José fez este trajeto todos os
dias até o terceiro ano das séries iniciais, pois logo teve que parar de
estudar para poder ajudar a família na lavoura, a mãe Lauricia tinha ficado
viúva pela segunda vez. Ele dizia que foram 3 anos muito dedicados ao estudo, o
que valeu por todos os outros que ele perdeu.
Muitas coisas aconteceram e o
tempo foi passando; José trabalhou muito, cresceu, tornou-se homem forte e
garboso, alto, olhos azuis, cabelos escuros, porte físico bastante interessante
- contam as pessoas que o conheceram, principalmente as mulheres, que quando o
viam montado em seu cavalo branco, de terno e gravata - que era como se vestiam
os moços da época - pra ir ás missas, na igrejinha da Lomba Alta. As vezes
passava a tarde por ali, ele e seus irmãos também moços, jogavam futebol ou iam
às domingueiras no Barracão. Essas domingueiras eram os lugares onde os
namorados se encontravam para conversar. Ele e seus irmãos não perdiam nenhuma
e José namorou muitas moças de Lomba Alta e também do Barracão. (Neste tempo
José e sua mãe já eram donos de terras no Barracão, na Rua Águas Frias)
Alguns acontecimentos bastante
tristes abalaram seu ritmo de vida. Numa destas tardes de domingo vinham ele em
cima de um caminhão, voltando para casa juntamente com seu irmão Alfeu; Este
discutiu com outro moço, que lhe deu um soco. Ele caiu do carroceria do
caminhão e bateu a cabeça em uma das muitas pedras que haviam pelo caminho.
José ficou desesperado; Seu irmão faleceu horas depois em casa, nos braços de
sua mãe.
Como se isso não bastasse, seu
outro irmão, também moço e companheiro de festas - que já não eram mais tantas,
desde a morte de Alfeu – também morreu. O inesperado, quase impossível aconteceu...
morreu caindo do degrau da porta de um caminhão em movimento e acabou sendo
atropelado pelo mesmo. José sentia mais uma vez a dor de perder um ente querido
e a tristeza tomou conta do sítio da Pedra Branca. Escureceram-se os dias de
sol e uma nuvem escura se apossou de suas vidas.
Sem outra solução, a família se
despediu do sítio e das terras onde tanto plantaram juntos; mudaram-se para o
Barracão, deixando para trás um rastro de tristeza sem fim. Eles não
conseguiram mais viver no sítio com a constante lembrança dos moços que os
deixaram cedo demais.
Com a mudança, José não teve dúvidas,
iria dirigir um caminhão. Comprou um FNM e virou caminhoneiro, deixando a
agricultura e o cabo da enxada e da foice pela boleia de um caminhão, para
percorrer pelas poeirentas estradas onde fazia fretes e entregava mercadorias
de uma cidade para outra, levando em seu coração a saudade da terra onde
nasceu.
Em um
daqueles famosos carnavais que aconteciam no antigo cinema, conheceu Nely
Walter, moça bonita, cheia de encantos e tida por muitos como uma das mais
belas moças do antigo Barracão. - Diziam que o Zé Walter, pai de Nely, podia
ser feio, mas sabia fazer filhas lindas. Ela era apenas uma menina, com 14
anos, mas ele se apaixonou perdidamente e iniciaram o namoro. Algum tempo depois
ele a roubou da casa dos pais e se casaram.
Quando Nely tinha 17 anos o casal
teve seu primeiro filho, que se chamou Alfeu em homenagem ao querido irmão que
José perdera. José ficou muito faceiro e orgulhoso, quando chegou de uma viagem
e o bebê tinha recém-nascido.
A vida ia bem e José agora já
tinha um caminhão novinho em folha. Grande parte dos homens da família eram
caminhoneiros - seu irmão Gentilino, os dois filhos dele, Albonir e José Farias
(Zéquinha), Edgar Wagner e Hilmar Wagner, filhos de sua irmã Verginia. Todos
moravam em Alfredo Wagner, todos eram casados e viajavam por meses corridos, deixando
suas esposas e filhos. O tio Zé era o mais “safado”, diziam os amigos, e contavam
muitos casos quando se reuniam para conversar.
Tio Zé voltou a ser feliz e
festeiro esqueceu um pouco das fortes dores que a vida havia reservado a ele no
passado.
Torcedor do Vasco – “preciso intervir nessa parte do texto de
minha mãe... ela deve ter ficado maluca, pois foi ele quem me ensinou a torcer
pelo melhor time do mundo, o Corinthians” – quando estava na cidade era só
festa no Bar do seu Talico. Participava de todas as festa da igreja. Foi ele,
juntamente com seu irmão Gentil, que doou
o São Cristovão padroeiro dos motoristas a igreja e sempre fazia a frente com o
santo em cima de seu caminhão no dia da benção dos carros na Festa em honra ao
santo.
José teve ainda mais quatro
filhos – um menino chamado Aldenir, uma menina chamada Sandra e as gêmeas
Adriana e Andréia (in memoriam). Quando os garotos terminaram os estudos em
Alfredo Wagner, José fez com que eles fossem estudar fora, em Lages e em
Florianópolis. Porém ambos foram fanfarrões e não corresponderam aos
investimentos do pai.
Veio a doença e José se viu
impossibilitado de continuar com a profissão de caminhoneiro. Passou então a se
dedicar apenas ao Sítio da Pedra Branca. O padrão de vida caiu bastante, mas
ele nunca pensava em se desfazer de suas terras, que não eram poucas. Sempre
dizia que queria deixar alguma coisa aos netos.
A asma passou a ser sua mais
frequente companheira e qualquer esforço físico desencadeava uma crise de tosse
que parecia sem fim.
Mas ele revivia os dias de
alegria e de viagens em seu caminhão contando as histórias aos filhos, amigos e
mais tarde aos netos que passaram a amar o vô Zé com todas a forças.
Em uma manhã fria de julho o seu
Zé Gonga partiu, deixando uma saudade imensa nos corações de todos que o
amaram.”
Jamais esquecerei daquela manhã, muito menos do último olhar que meu vô
me lançou. A dor de perder meu melhor amigo, meu porto seguro, marcou
fortemente minha vida.
Sempre que ouço o poema de Casimiro de Abreu – Meus Oito anos - me
recordo de uma tarde em que o vô Zé estava me ajudando a fazer os deveres e me
ajudou a decora-lo. Hoje sempre que o recito me vem a memória aquela cena, e ao
mesmo tempo em que a saudade faz meus olhos se encherem d’agua meu coração fica
acalentado, como se meu vô tivesse ao meu lado, segurando minha mão. Fico
feliz, por ter tido a oportunidade de ter convivido com ele – mesmo que por
pouco tempo – e por ter seus exemplos e ensinamentos sempre presentes em minha
vida.
Oh! que saudades que
tenho
Da aurora da minha
vida,
Da minha infância
querida
Que os anos não trazem
mais!
Que amor, que sonhos,
que flores,
Naquelas tardes
fagueiras
À sombra das
bananeiras,
Debaixo dos laranjais!
2 Comentários
Carol gostei bastante da história de seu Avô, José Lino de Mello. A forma como sua Mãe descreve o cotidiano e algumas situações do dia a dia simples da vida no sitio bem parecidos com os vividos pela minha família, como o parto em casa, a distância percorrida para chegar à escola, tendo que atravessar o rio, nas manhãs de geada... Confesso que ao ler, viajei no tempo.
ResponderExcluirParabéns!
Que bela história! Que belo texto! Senti-me tocado ao lê-lo.
ResponderExcluirParabéns, Carol e Sandra!