2019 - Belfast - Irlanda do Norte

Como já não era novidade pra ninguém, em 2019 eu estava morando na Europa. Tinha pouco mais de um mês por lá quando bateu aquela vontade que só quem vive longe entende: pegar a estrada e explorar o que o mapa oferecesse. E foi assim que decidimos passar um fim de semana na Irlanda do Norte.

Eu já tinha estado lá uma vez, em 2018, e tinha gostado. Mas dessa vez foi diferente. Especial. Porque era viagem com amigos — aqueles que viram família quando você está do outro lado do oceano. Éramos eu, Gra, Ro, Raquel, Marcelo e Mari. Pegamos um ônibus e subimos rumo a Belfast, capital da Irlanda do Norte e parte do Reino Unido. Tínhamos um Airbnb esperando por nós e aquela ansiedade boa de quem sabe que a aventura está só começando.

Belfast nos recebeu com aquele ar sério, quase contido, que as cidades do norte carregam. Uma mistura curiosa — e ao mesmo tempo fascinante — de cidade irlandesa com sotaque britânico. Era como se Belfast existisse entre dois mundos, e não fizesse questão de escolher um só. As bandeiras, os murais políticos e os bairros que mudavam de cara de uma rua para outra nos lembravam, o tempo todo, que a cidade ainda guardava suas fronteiras invisíveis. E mesmo assim, ou talvez justamente por isso, havia algo de encantador naquela atmosfera que parecia meio suspensa no ar. Belfast seguia em frente — sem esquecer, mas sem se render.

Chegamos no final da tarde, e como já era ritual nas nossas viagens, fomos caminhando da rodoviária até o Airbnb. As malas pesavam, claro, mas o entusiasmo empurrava a gente pelas ruas. Quando enfim largamos tudo no apartamento, fizemos o óbvio: pedimos pizzas. Ali, sentados no chão da sala, rindo à toa, começamos oficialmente o nosso fim de semana em Belfast.

Mas a noite não podia terminar assim. Depois do jantar improvisado, seguimos para o meu pub favorito na cidade: o Thirsty Goat. Aquele tipo de lugar que não precisa tentar ser autêntico — ele simplesmente é. Cerveja gelada, mesas de madeira marcadas pelo tempo, música ao vivo tocando no volume certo. Naquela noite, uma banda daquelas boas, que tocam clássicos que todo mundo conhece, preenchia o ambiente. Entre um gole e outro, a gente se pegava cantando junto, rindo à toa, como se Belfast estivesse nos dizendo: relaxa, aqui vocês estão em casa.Era como se Belfast, ali no Thirsty Goat, mostrasse seu lado mais descontraído. E nós, claro, brindamos a isso. Porque algumas noites são feitas exatamente disso: amigos, música e uma cerveja boa na mão.

O auge da noite, porém, foi quando a banda começou a tocar Zombie, do The Cranberries. Não era apenas uma música — era um símbolo. Naquele momento, estar na Irlanda do Norte e ouvir aquela letra carregada de dor e resistência ganhou outro peso. O refrão ecoava pelo pub, e mesmo sem combinar, cantamos juntos. Não tinha como não cantar. Porque aquela música atravessa gerações e fronteiras, mas, ali, soava como parte da paisagem.

Olhei ao redor e percebi que não éramos só nós. O pub inteiro parecia entender o significado daquelas palavras, mesmo quem não prestava atenção. Era como se a cidade, com toda sua história silenciosa e suas divisões invisíveis, estivesse ouvindo também. Ouvir Zombie, em Belfast, foi quase como entender um pedaço da Irlanda que os livros não explicam. Ali, no Thirsty Goat, entre copos erguidos e vozes em coro, foi impossível não sentir que aquela viagem já tinha valido a pena. Voltamos para casa de Black Cab, bem inglesinhos. 

No dia seguinte, ainda com a melodia de Zombie ecoando na cabeça, acordamos cedo para algo completamente diferente: um tour que nos levaria por alguns dos cenários mais incríveis da Irlanda do Norte. Tínhamos comprado um daqueles pacotes turísticos clássicos, perfeitos para quando você só quer desligar o cérebro e deixar alguém te levar — e foi exatamente isso que fizemos.

Nossa primeira parada foi o Carrickfergus Castle — um castelo medieval que parecia saído direto de um livro ilustrado, mas sem aquele ar de coisa intocável. As pedras gastas, o mar batendo lá embaixo e o vento cortante criaram o cenário perfeito para as fotos de início de viagem. Ali, entre torres e muralhas, começou oficialmente o nosso dia de estrada.

Seguimos então pela famosa Causeway Coast, uma das rotas costeiras mais bonitas do mundo. O Atlântico nos acompanhava pela janela do ônibus, as falésias despencavam direto no mar, e a cada curva da estrada parecia surgir uma pintura diferente. Descemos do ônibus e fizemos uma caminhada pela encosta do penhasco. O mar, de um azul quase caribenho, contrastava com o verde vibrante da grama e o azul do céu. Foi, sem dúvida, um dos lugares mais lindos que eu já tinha visto na vida. Em algum momento começamos a brincar com uma amiga nossa, dizendo que ela parecia uma bruxa… uma bruxa meio brava, diga-se de passagem. E, claro, começamos a rir dizendo que ela tinha tantos namorados quanto corvos existem na Irlanda — o que não é pouca coisa, considerando a quantidade de corvos espalhados pelo país.

Foi assim, entre piadas e risadas, que criamos uma lenda improvisada: uma espécie de maldição. Dizíamos que ela tinha feito um pacto com uma deusa para manter sua beleza, mas que, em troca, cada homem com quem ela se envolvesse acabava condenado a virar um corvo. E foi assim que surgiram todos os corvos da Irlanda.

De volta a Limerick, essa brincadeira ficou martelando na minha cabeça. Passei dias pensando em como transformar aquilo em uma história de verdade. Até que, um dia, sentei e comecei a escrever. Não terminei de uma vez — a conclusão só veio durante uma meditação, quando encontrei o final perfeito.

O conto acabou se chamando “Cailleach Aoife e os Corvos da Irlanda”. E conta justamente isso: a história de uma mulher que viveu na Irlanda há muito tempo, e que, em troca da beleza eterna, aceitou um destino cruel. Cada homem que cruzava seu caminho era condenado a ser livre... mas com asas. Foi assim que, segundo a lenda que inventamos, os corvos passaram a dominar os céus da Irlanda.



E tudo isso começou ali, entre falésias e mar azul.

A próxima parada foi a Carrick-a-Rede Rope Bridge — uma ponte suspensa que liga o continente a uma pequena ilha rochosa. Atravessar aquela ponte, balançando sobre o mar, foi um daqueles momentos em que a gente alterna entre rir, sentir medo e agradecer pela vista. Claro que decidimos atravessar. Deu um frio na barriga, é verdade. Mas nada comparado à Raquel, que só conseguiu vencer o medo agarrada nos braços do Marcelo. E foi assim, grudada nele, que ela atravessou a ponte inteira, olhos fechados, passos curtos, mas sorriso vitorioso quando chegou do outro lado. Parecia até cena da Ilha de Ferro, de Game of Thrones. Só que, dessa vez, éramos nós vivendo a aventura. 

Seguimos então para o Giant’s Causeway, aquele lugar que, de tão surreal, parece mais uma criação da fantasia do que da geologia. São milhares de colunas hexagonais de pedra, encaixadas lado a lado, como se algum escultor gigante tivesse moldado tudo à mão. E, na verdade, essa é exatamente a lenda local: dizem que o caminho foi construído por um gigante irlandês que queria atravessar o mar para lutar contra seu rival escocês. Caminhar sobre aquelas pedras, com o mar batendo forte ao redor, foi uma experiência difícil de explicar. Do outro lado do mar, fica a Escócia. Era como estar num cenário que não se repete em nenhum outro canto do mundo. O Giant’s Causeway parecia uma fronteira entre o real e o impossível — e a gente ali, pequenininhos, atravessando uma lenda a cada passo.

O tour seguiu até a mítica Dark Hedges, aquele túnel natural de árvores retorcidas eternizado pela série. Mas, mesmo sem Game of Thrones, o lugar seria impressionante. Caminhar ali, no meio daquelas árvores centenárias, foi como atravessar um cenário encantado — ou talvez um pouco assombrado. Sinistro e lindo, na mesma medida.

A cada parada, a certeza crescia: a Irlanda do Norte era pequena só no mapa. Porque ali, entre castelos, pontes e falésias, ela parecia imensa. E nós, turistas felizes e meio descabelados pelo vento, estávamos colecionando mais do que fotos. Estávamos vivendo um dia para lembrar.

Ao final da noite, fomos para o The Dirty Onion e foi mais uma noite memorável, rimos muito, dançamos e cantamos até nos esbaldar. 

Não dá pra falar de Belfast sem mencionar a Falls Road, que naquele domingo foi o nosso destino. Caminhar por ali não é apenas turismo: é uma aula a céu aberto. A Falls Road é o coração do lado republicano da cidade, onde a história dos conflitos, das lutas e da resistência está estampada nas paredes. Literalmente.


Os murais são o que mais impressiona. Cada parede conta uma história. Não são só desenhos bonitos: são gritos congelados em tinta. Há homenagens aos presos políticos, tributos aos que morreram lutando pela independência, imagens de mártires do movimento republicano. Mas também há espaço para solidariedade internacional — encontramos murais sobre a Palestina, Cuba e até figuras como Nelson Mandela. A luta pela liberdade não conhece fronteiras, e a Falls Road faz questão de lembrar disso.

Caminhar por ali foi desconfortável e fascinante na mesma medida. Cada mural parecia nos obrigar a desacelerar e a refletir. Não era um lugar para fotos rápidas. Era um lugar pra olhar. Pra tentar entender — mesmo sabendo que nunca entenderíamos por completo.

Um dos murais que mais me marcou foi o que homenageia os grevistas de fome de 1981, com a imagem de Bobby Sands, o rosto mais conhecido da luta. Seus olhos pintados nas paredes da cidade pareciam te seguir. Era como se a história ainda estivesse viva, observando quem passa.


A Falls Road não tenta ser bonita. Ela não precisa. Ela carrega cicatrizes. E cicatrizes também contam histórias.

Depois da intensidade da Falls Road, seguimos explorando um lado mais leve de Belfast. Passamos pelo moderno Museu do Titanic, aquele prédio impressionante que lembra uma proa de navio cravada no meio da cidade. Dessa vez não entramos — eu já conhecia por dentro —, mas tiramos algumas fotos e aproveitamos para admirar a arquitetura futurista contrastando com os estaleiros antigos ao redor.

Seguimos então por uma Belfast mais turística: encontramos alguns dos murais do Game of Thrones, tiramos fotos divertidas com o famoso Big Fish — a escultura azul que conta a história da cidade em azulejos — e, claro, paramos diante do Albert Memorial Clock, o “Big Ben de Belfast”. Com sua torre de pedra e o relógio levemente inclinado, ele parecia vigiar silenciosamente o centro da cidade. Não resistimos a mais algumas fotos ali, rindo e fingindo sermos turistas organizados, quando na verdade só estávamos aproveitando a liberdade de andar sem destino certo. 

Belfast nos mostrava, a cada esquina, que mesmo longe de ser uma cidade “fofa”, sabia ser acolhedora do seu jeito. E, entre história, pubs e esculturas improváveis, ela se despedia da gente deixando aquela sensação boa de “até a próxima”.


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