“Me chama de Shakira que eu tô na Colômbia.” Sim, eu postei essa legenda. Afinal, se existe um lugar no mundo onde “mi casa, su casa” faz sentido, é na terra da minha colombiana favorita.
Conhecer a Colômbia foi um presente inesperado que a vida me deu. E, apesar de ter viajado sozinha, em nenhum momento me senti só. Sempre quis riscar todos os países da América do Sul do meu mapa, e a Colômbia era aquele destino que tinha ficado para trás quando fiz meu mochilão. Faltavam Equador, Venezuela, Suriname e as Guianas — mas eu chego lá. Devagar, no meu tempo.
Cartagena me arrebatou. Uma joia caribenha, dessas que brilham até quando chove. Linda, vibrante, quente — em todos os sentidos. Caminhei pelas ruas da cidade murada, mergulhei nas águas transparentes do Caribe, fiz amizade com os peixinhos e com gente de todo canto, assisti ao pôr do sol em um café charmoso e me dei o luxo de fazer tudo o que um turista bem-intencionado faria. No final das contas, escrevi até alguns contos — porque quem é feito de palavras sempre volta carregando mais histórias do que souvenirs.
Viajar sozinha para a Colômbia foi um desafio que, no fundo, eu mesma inventei. Chegando lá, percebi que o medo era só mais uma bagagem desnecessária. E ficou na alfândega.
Esse relato chega com alguns anos de atraso — como tantas outras coisas na minha vida. Encontrei minhas anotações numa agenda esquecida no Brasil e resolvi fazer esse exercício: relembrar, escrever, viajar de novo. Só que, dessa vez, pelas lembranças.
Vamos juntos?
Cartagena, 02 de novembro 2018
Sobre Cartagena, eu sabia pouco. Apenas que tinha sido cenário do filme Tudo por uma Esmeralda e que García Márquez, o colombiano mais famoso depois da Shakira, usara a cidade como pano de fundo para O Amor nos Tempos do Cólera. Nada mais justo. Cartagena não é apenas uma cidade – é um personagem.
Vale dizer que minha relação com Márquez é de longa data. Ele tinha essa mania bonita de transformar a realidade em poesia. Eu tento fazer o mesmo lá de Alfredo Wagner, onde meu coração mora no Brasil. Por isso, conhecer Cartagena era quase como entrar na casa de um velho amigo: tudo me parecia familiar, mesmo sem nunca ter pisado ali.
Mas Cartagena não vive só de escritores e cenários de cinema. Ela vive. E vive intensamente.
Minha primeira impressão? O calor. Aquele tipo de calor que te abraça como se fosse parente de primeiro grau. Mal pisei no aeroporto e já pensei em desistir. Mas bastou chegar ao hotel — simples, confortável e, acima de tudo, com ar-condicionado — para meu corpo começar a aceitar o destino.
Logo no primeiro dia, embarquei em um city tour a bordo de uma chiva. Se você nunca viu uma, imagine um cruzamento de ônibus escolar americano com trio elétrico de micareta. Aberta, colorida e tocando música alta. Uma experiência cultural e acústica.
Visitamos a muralha, o mirante do Convento de Santa Cruz de la Popa, o Castillo de San Felipe de Barajas, a Plaza de los Coches e a famosa Porta del Reloj. As sacadas floridas e o caos charmoso das ruas começaram a me conquistar.
Como toda boa viagem, fiz amigas improváveis: a maioria senhoras argentinas, daquelas que viajam mais do que eu já sonhei viajar. Entre elas, a Dorita – que me rendeu boas risadas e quase me enfiou numa fantasia no meio da rua. Em outro momento, perguntou para o homem errado se ele era o ator famoso que estávamos tentando identificar.
A propósito, encontrei um ator da Globo nesse city tour. Eu tinha uma queda por ele, mas sequer lembrava o nome. Ele, gentil, se ofereceu para tirar uma foto minha – que ficou horrível. Aproveitei a deixa e pedi uma foto com ele – que conseguiu ficar ainda pior. Naquele momento, não decidi se queria rir ou me esconder atrás de uma palmeira. Só depois descobri o nome dele: Juliano Lahan, o italiano da novela Orgulho e Paixão.
Antes que a vergonha me consumisse, o dia seguiu. Passei pelo famoso mercado de esmeraldas. A Colômbia parece ter uma relação afetiva com essas pedras verdes. E eu, que nunca fui chegada a joias, me vi fascinada. Havia algo hipnotizante nas vitrines. Por um instante, considerei levar uma pequena esmeralda como lembrança, mas o preço rapidamente me trouxe de volta à realidade. Fiquei apenas com as fotos — e a sorte, se viesse, teria que ser sem joias.
Os vendedores, sempre animados, repetiam o mantra local: “Hoy es viernes y el cuerpo lo siente”. Hoje é sexta-feira, e o corpo sente. Talvez sentisse sede, cansaço ou apenas vontade de dançar salsa. Não sei. Só sei que, em Cartagena, até a preguiça é convidada para bailar.
Naquele dia, escrevi no meu caderno algumas ideias para contos. Não usei nenhuma até hoje, mas estão guardadas. Como a própria cidade. Porque Cartagena, aprendi, é dessas que você leva pra casa – nem que seja só no coração.
Cartagena, 03 de novembro, 2018
No segundo dia, fui em busca da tal Playa Blanca. Todo mundo dizia que era o paraíso. E era mesmo. Um daqueles cenários que você vê em documentários do Discovery Channel e jura que o azul do mar foi ajustado no Photoshop. Mas ali, diante dos meus olhos, era tudo verdade. A água era transparente, morna, infinita. E eu, no meio daquela imensidão, me sentindo tão pequena quanto um peixinho.
Fiz snorkel. Com minha GoPro pendurada como um colar de surfista, me aventurei embaixo d’água para capturar fotos e vídeos. E capturei. Mas precisei manter a pose, porque ninguém avisa que snorkel é um esporte de risco. Levei um chute na cabeça (sim, alguém simplesmente me chutou), engoli água salgada, e por alguns segundos achei que seria notícia: “Brasileira se afoga em Playa Blanca após selfie subaquática”. Mas disfarcei. Afinal, não queria passar vergonha no Caribe.
Como se quase morrer não bastasse, reencontrei Juliano Lahan. Sim, o ator. No mesmo barco. Só que dessa vez, com um detalhe cruel: eu estava de biquíni. A pior versão de mim. Naquele momento, entendi que o destino não precisa ser irônico, mas ele gosta de ser.
Tinha levado pouco dinheiro – minha tentativa ingênua de evitar gastos desnecessários. Grande erro. Paguei pelo mergulho e fiquei sem dinheiro até para comprar água. O almoço estava incluído, mas eu praticamente desidratei no paraíso. Tinha o mar à minha volta e uma sede digna de deserto.
Voltei ao hotel no final da tarde, mas antes caminhei pela cidade murada. Cartagena, à noite, parece ainda mais viva. Havia um festival acontecendo, e a cidade transbordava música, luzes, cores e aquele calor humano que só lugares assim sabem oferecer.E ali, entre sacadas floridas e ruelas de pedra, percebi que mesmo sozinha eu não estava só. A cidade me fazia companhia. E, sinceramente? Melhor companhia, impossível.
Cartagena, 04 de novembro, 2018
Acordei cedo, sem despertador. Em Cartagena, até o corpo entende que dormir é perder tempo. Resolvi explorar Bocagrande a pé. Caminhei até uma praia que tinha visto no passeio da chiva, sob um sol que não perdoava ninguém, mas que me parecia menos agressivo naquele domingo preguiçoso.
Depois do banho de mar, fui encontrar minhas amigas mineiras – aquelas senhoras que a vida me apresentou e que, em poucos dias, já tratavam de me adotar. Domingo, segundo elas, era dia de missa. E eu aceitei o convite. Encontramo-nos na Igreja de São Pedro, mas, ironicamente, não assistimos à missa. Eu e a Lúcia, uma das mineiras, escapamos e fomos passear. Talvez Deus tenha entendido.
Em alguma anotação antiga, escrevi que o sotaque da Lúcia e da Wilma me lembrava minha família mineira favorita no Brasil, os Almeidas. Algo doce, nostálgico, caseiro. Lembrei também que a Wilma achava que eu era uma devota de missa dominical – deixei que acreditasse nisso. Por que estragar a imagem que alguém tem de você?Curiosamente, minhas novas amigas, todas acima dos sessenta, eram eleitoras fervorosas do Bolsonaro – e só no último dia da viagem revelei que tinha votado no Haddad. Melhor assim. Algumas verdades precisam de timing.
Passeamos pelo centro histórico, subimos novamente na muralha, e o destino nos levou ao Café del Mar. Havíamos lido sobre o lugar, claro. Todos os blogueiros diziam que ver o pôr do sol dali era obrigatório. E pela primeira vez na viagem, decidi seguir uma recomendação turística sem questionar. Faria isso mais tarde.
Continuamos o passeio. Passamos pela casa da família de García Márquez – aquela casa simples, silenciosa, guardando memórias de um homem que soube transformar a realidade em literatura. Fiquei olhando para a fachada e pensando: se eu tivesse aquela vista e tempo suficiente, talvez também escrevesse um prêmio Nobel.
Descemos da muralha e continuamos vagando sem rumo certo, encontrando ruas lindas, dessas que você fotografa e depois percebe que nenhuma foto fez jus ao momento.Entramos no Marzola, um bar argentino fofo, decorado com referências a Carlos Gardel. Pedimos água, mas a vontade era pedir um tango.
Depois, numa busca quase filosófica por comida típica, deixamos que um guia nos conduzisse até um restaurante simples. O tipo de lugar que, se fosse pela aparência, a gente teria evitado. Ainda bem que não. Comemos sopa estranha (e deliciosa), feijão e pratos que a aparência nunca denunciaria como saborosos.
À tarde, como combinado, retornei ao hotel. Depois, fui encontrar as meninas no Café del Mar para o pôr do sol prometido.
Depois do espetáculo natural, a noite continuou. Fomos buscar a Wilma no hotel Balcones de Alheli e decidimos encontrar algum lugar para nossa “cerveja final”. Tentamos a Chiva Rumbera — um nome que prometia festa — mas estava vazia. Procuramos clubes de salsa; nos indicaram dois: o Crazy Salsa e o Bar Fidel. Ambos fechados. Cartagena, naquela noite, parecia querer descansar.
Aceitamos o destino e encontramos um pub chamado O'Clock. Pouca variedade de cervejas, mas o ambiente compensava. Rimos, bebemos, e, às dez da noite, me despedi. Voltei ao hotel. Às vezes, saber a hora de voltar é mais sábio do que saber a hora de ficar.
Naquela noite, dormi feliz. Como quem entende que o melhor da viagem nem sempre está nos pontos turísticos, mas nas pessoas que o acaso senta ao seu lado.
Cartagena, 05 de novembro de 2018
Naquele dia, o plano inicial era outro. Eu queria ir até a Ilha de Bora Bora – o nome vende o paraíso, não vende? Mas não deu. A alternativa foi embarcar para Cocotera, que, confesso, nunca tinha ouvido falar. E é por isso que, às vezes, o plano B nos surpreende mais do que o A. Se o paraíso existe, ele se parece bastante com aquele lugar.
Cocotera era o Caribe no modo estampa de revista: água morna e transparente, areia branca, e aquele tom de verde esmeralda que parece fabricado em laboratório. Mas era natural. E era meu, pelo menos por algumas horas.
Almocei ali a melhor refeição de toda a viagem. Arroz com leite de coco, banana frita, salada e frango grelhado. Simples e perfeito. Eu teria voltado para Cartagena só para repetir aquele prato.
Naquela hora, lembrei do Jack Sparrow. Pensei que talvez não fosse tão difícil ser um pirata se o refúgio fosse uma ilha como essa. Bastava um estoque de rum. E talvez um livro. Eu viveria ali sem problemas.
À noite, reencontrei minhas amigas para jantar. Fomos no Hard Rock Café — porque às vezes o clichê conforta. Depois, ainda deu tempo para uma Corona num pub perto da torre do relógio. A noite terminou com uma chuva inesperada, como se Cartagena dissesse: “Hora de dormir.”
Peguei um táxi de volta ao hotel. E fui. Sem pressa. Sem planos para o dia seguinte. Porque às vezes, o melhor roteiro é não ter nenhum.
Cartagena, 06 de novembro de 2018
Último dia em Cartagena. Última chance de entender o que aquela cidade queria me contar. Então fiz o que se espera de uma turista disciplinada: caminhei. E caminhei muito.
Era dia de walk tour com o guia Maurício – um colombiano falante, divertido, e meio convencido, que não perdeu a oportunidade de me contar que já tinha feito um filme com a Bruna Lombardi e pra pedir pra tirar foto comigo. Não questionei a parte do filme. Talvez fosse verdade. Talvez não. Em Cartagena, qualquer história parece possível.
Maurício segurava o celular em uma mão, minha câmera na outra, e enquanto fotografava, contava histórias como quem entrega um segredo. Caminhar por Cartagena com ele era como folhear um livro antigo, desses que cheiram a poeira e sal.
Falou da colonização. Da muralha construída não só para proteger, mas para impressionar. E das pedras gastas pelo tempo, mas que ainda seguram a cidade como um abraço.
Passamos pelo túnel dos escravos, um lugar onde o silêncio pesa mais do que as pedras. Ninguém ali ri. Nem mesmo Maurício. A Rua da Amargura fez jus ao nome. O peso da história está nas paredes, mas também no ar.
O Forte oferecia o oposto: vento. Um vento tão bem-vindo que parecia ter sido inventado só para os turistas não desistirem da subida. Lá de cima, a vista se abria, generosa. Cartagena parecia caber inteira dentro do meu campo de visão, mas ao mesmo tempo eu sabia que não caberia dentro de nenhuma fotografia.
Visitamos a Plaza del Coche, os balcões coloniais, as histórias de milionários que ficaram pelo caminho e hotéis onde eu provavelmente nunca me hospedarei. Mas fotografei, como quem guarda um sonho só para ter onde voltar.
Em meio às histórias, Maurício apontou para os valos ao lado da muralha. Explicou, com naturalidade desconcertante, que um dia aqueles valos abrigaram crocodilos. Eu ri. Achei que fosse piada. Não era. Cartagena gosta de brincar com o improvável.
Passamos por Boca Grande, onde o mar disputa espaço com os edifícios modernos. A igrejinha onde o povo reza pelo trivial: saúde, amor e sombra. O índio Catalina, personagem que desafia a lógica do próprio nome. O relógio do sol, parado no tempo, e o bairro que parece Cuba – não só pelo visual, mas pela música que escapava das casas.
Fechamos o tour na Plaza de Toro. Não sei se pelo calor, ou pelo cansaço, mas percebi que eu não queria mais ouvir histórias. Eu queria viver ali um pouco mais.
Quando olhei no celular, tínhamos caminhado mais de 15 quilômetros. Mas era o tipo de cansaço que preenche. Saí daquele tour não exausta, mas completa.
E antes de voltar para o hotel, fiz o que toda turista obediente faz: posei para a foto tradicional com as mulheres colombianas, vestidas a caráter, equilibrando frutas na cabeça. Era kitsch. Era óbvio. Mas era Cartagena.
Dizem que Cartagena é quente. Concordo. Mas não é só o calor do sol. É um calor humano. Um calor de gente, e não estou nem falando dos milhares de vendedores que tentam te vender de tudo. De música. De vida. Um calor que transborda pelas muralhas, pelas sacadas floridas, pelos sorrisos que te oferecem nas ruas.
Voltei para casa bronzeada de histórias. Mais leve. Mais eu.
A Colômbia me ensinou uma lição simples: às vezes, o medo é só um roteiro mal planejado. E a vida, no fundo, é um walk tour improvisado. Basta ter coragem de seguir.
E, claro, um bom protetor solar.
0 Comentários