Desde 2021, essa ideia pairava no ar feito vela ao vento. Sonhávamos com Kingston, é verdade — ambiciosos, sem nos darmos conta de que nosso veleiro, o Ceilidh (que em gaélico quer dizer algo como reunião de amigos com música), tem muitas qualidades, mas velocidade não é uma delas. Quando nos demos conta disso, Kingston saiu do mapa e entrou em cena um plano mais realista, mas ainda sem rumo definido. Batizamos aquela primeira aventura de Trip to Nowhere21. E que lugar maravilhoso foi esse "lugar nenhum".
Era tudo novidade. Primeira vez passando pelos locks, primeiras noites a bordo, primeiras decisões erradas com gosto de aprendizado. Marinheiros de primeira viagem, literalmente. Fomos acompanhados pela Shelley e pelo Collard, que estava no seu próprio barco, o Jablier. Descobrimos uma baía logo depois dos locks e é lá, no Porto Seguro, que geralmente passamos a primeira noite de nossas viagens upriver.
Naquela primeira vez, passamos uma noite ali, depois seguimos até Prescott, onde ancoramos só para tomar uma cerveja num pub irlandês (claro). Dormimos perto de uma praia e voltamos para a nossa baía para mais uma noite. Simples assim. E inesquecível.
Teve um pequeno caos no caminho — claro que teve. Estávamos nos aproximando da ponte que, para quem vê de longe, lembra a Hercílio Luz. Rory estava no barco do Collard e me ligou pedindo para filmar com a GoPro a nossa passagem por baixo da ponte. Passei o leme para a Shelley, assumi que ela saberia conduzir o barco, não expliquei nada, apenas passei o leme... e bem, ela não sabia. Resultado: batemos no barco do Collard e ficamos girando, engatados, no meio do rio St. Lawrence. Foi assustador por alguns minutos — ou segundos, não sei dizer. Mas virou história boa pra contar. E ninguém se machucou.
Dessa viagem lembro da galera subindo no barco do Collard com as botas sujas, da tentativa de explorar as encostas da baía (spoiler: só mato), e da comida do Rory e da Shelley — especialmente o jambalaya, um pouco salgado, um tanto apimentado, mas absolutamente memorável.
Ainda em 2021, voltamos ao rio. Sem o Collard, mas com a Kayla a bordo. Kayla, assim como Rory, aprendeu a velejar pequena e tem essa ligação com a água que não se ensina — se sente.
Dessa vez a aventura começou cedo: a menos de 5 km do yacht club, bati o casco no fundo do rio. Um susto — e mais uma história pra coleção. Mas o momento mais épico foi numa tarde em que decidimos tirar fotos do barco no pôr do sol. Ancoramos na baía, remamos até uma ilhota com a câmera da Kayla em mãos, e a correnteza quase não nos deixou voltar. Eu, em cima da boia, agarrada na câmera como se fosse um troféu. Foi bonito. E um pouco desesperador também. Mas, no fim, deu certo.
Depois disso, vieram três anos sem grandes navegações. Casamentos, viagens, verões ocupados demais para velejar. Mas 2025 chegou. E com ele, a chance de finalmente ir até Brockville no Canada Day — tradição nossa: passar o feriado no barco com amigos, assistindo aos fogos refletidos na água.
E dessa vez, sem ponte, sem colisão, sem correnteza traiçoeira. Só a gente, o rio, e a sensação boa de estar exatamente onde deveríamos estar.
Decidimos ir para Brockville de veleiro e ficar hospedados no hotel Tall Ships com nossos amigos. No dia 29 de junho, no fim de semana em que minhas férias começaram, partimos para nossa aventura. Bem cedinho, saímos do yacht club. O dia não estava quente, mas com um travesseiro e um cobertor, passei a maior parte da viagem dormindo, enquanto meu capitão de barba ruiva velejava tranquilamente até os locks. Era tudo que eu precisava. A passagem foi tranquila e, logo depois, resolvemos ir até um yacht club parceiro onde poderíamos passar a noite. No dia seguinte, nossos amigos Chris, Joe, Roohi e Maya embarcariam conosco.
Confesso que fiquei tensa. Sabe aqueles filmes de aventura em que os exploradores estão num rio estreito, cercado de vegetação, e começam a chover flechas? Só faltaram as flechas. O rio era estreito e raso, com árvores submersas, e eu estava na proa tentando guiar o Rory. Chegamos às 16h04, mas o local havia fechado às 16h. Ainda poderíamos atracar, mas optamos por voltar ao nosso Porto Seguro. Aquele lugar era estranho demais, e não queríamos ter que voltar lá pela manhã.
Ancoramos, comemos um burrito delicioso que o Rory preparou e assistimos a um pôr do sol maravilhoso ao som de "A Luz de Tieta", tomando Coronas e jogando dominó. Depois, noite tranquila assistindo Castle a bordo.
Na manhã seguinte, com o sol forte já cedo, fizemos nosso tradicional café do barco: salmão com cream cheese e biscoito (porque eu não gosto de bagel). Seguimos até Prescott para buscar nossos amigos. E foi só no meio do rio que a gente percebeu o quanto estava sentindo falta dessas viagens.
Abastecemos o barco e logo o grupo estava completo. Conversa boa, jogo de cartas, risadas. Poucas horas depois, avistamos nosso hotel, o Tall Ships. Preciso dizer: chegar de barco no hotel e atracar na marina foi surreal. Me senti rica e sofisticada (ok, não vamos contar que havia barcos ali de mais de um milhão de dólares... e não era o nosso hahaha). Quase me senti a Meryl Streep no clipe de "Money, Money, Money" em Mamma Mia. Yes, baby!
O hotel era maravilhoso. Encontramos o resto do grupo: AJ, Megan, Campbell, Andrea, Brooks e Sully. A vista do apart-hotel era perfeita. Jantamos à beira do rio, tiramos fotos no elevador, e subimos para a piscina onde passamos algumas horas relaxando, antes de encerrar a noite com jogos e muitas risadas.
Na manhã seguinte, o café foi cortesia dos Carriers: McDonald’s entregue no quarto. Depois, caminhada pelo entorno do hotel e visita ao túnel ferroviário histórico de Brockville.
Construído em 1860, é o túnel ferroviário mais antigo do Canadá. Durante anos, ficou esquecido, um segredo sob os pés da cidade. Mas hoje, restaurado e iluminado com luzes coloridas e trilha sonora ambiente, virou uma atração turística imperdível, ainda mais por ficar do ladinho do nosso hotel. Caminhar por aquele túnel é como atravessar um corredor do tempo — e foi impossível não pensar em quantas jornadas, como a nossa, começaram ou terminaram ali perto, às margens do St. Lawrence.
Depois do túnel, eu e a Megan ainda fomos para outra caminhada e logo nos juntamos ao grupo para conhecer outra grande atração de Brockville: o Don’s Fish and Chips. Todo mundo que sabia que iríamos para lá dizia que precisávamos provar. É um trailer simples, mas que serve o melhor Fish and Chips da região, segundo os locais. E olha, valeu a pena. Aprovado por mim e pelo Rory — que já vivemos na Irlanda, a meca do Fish and Chips. Comemos enquanto as crianças brincavam no parque, soltavam pipa e se divertiam.
Na volta ao hotel, era hora de conhecer o Aquatarium, um centro interativo que celebra o ecossistema do Rio St. Lawrence e a região das 1000 Islands. A gente achava que era só mais um aquário, mas acabamos passando horas ali, entre tanques, lontras, castores e simuladores. Tive que literalmente retirar o Rory de um brinquedo que simulava uma usina hidrelétrica — ele queria voltar no dia seguinte para “fechar o jogo”. O Aquatarium é feito para crianças, mas adultos se divertem ainda mais. Saímos de lá com a certeza: Brockville não é apenas uma parada. É um destino completo.
Passamos mais algumas horas na piscina do hotel. Rory preparou o jantar para todos: uma macarronada deliciosa. Depois, nos organizamos para assistir à queima de fogos. Os meninos escolheram a marina como ponto estratégico, e a promessa era de 15 minutos de espetáculo. Cumpriu. Não foi como Copacabana ou mesmo Florianópolis, mas foi bonitinha. E eu e Rory adoramos assistir a esses momentos juntos. Nosso Canada Day estava completo.
No dia seguinte, quase tivemos um pequeno impasse. Eu queria finalmente ver as 1000 Islands, nosso sonho desde 2021. Rory queria ir com as crianças ver os castores novamente. No fim, ele aceitou. E agradeceu. Foi lindo.
As 1000 Islands sempre foram o nosso objetivo, ainda que por um bom tempo parecessem inalcançáveis. Um arquipélago com mais de 1800 ilhas espalhadas pelo Rio St. Lawrence, entre o Canadá e os Estados Unidos — algumas com castelos, outras com uma única árvore, muitas desabitadas, todas com um charme quase mítico. Desde que ouvimos falar da região, ficamos fascinados com a ideia de navegar por entre essas ilhas, ancorar em baías escondidas, observar o sol se pondo sobre a água com a sensação de estar dentro de um cartão-postal. Chegar ali com o nosso próprio barco, depois de anos de adiamentos, foi como riscar um sonho do mapa — não com pressa, mas com alma. Já quero voltar.
Subimos o rio por mais de uma hora e levamos apenas 10 minutos para voltar até o hotel, o que nos mostrou que teríamos uma volta tranquila. Mas ainda tínhamos um dia inteiro em Brockville e queríamos aproveitar.
Voltamos para o almoço preparado pelo Chris, conhecemos um casal amigo dele e suas filhas, que passaram o dia conosco. Parque, piscininha e, à noite, visitamos a Cervejaria 1000 Islands para fechar a viagem com chave de ouro.
No dia seguinte, começamos o retorno para casa. AJ e Megan já haviam ido embora. Andrea seguiu de carro com os meninos. Nosso destino era Prescott. No barco, jogamos dominó, conversamos, rimos. E, em Prescott, paramos no mesmo pub irlandês da primeira viagem, onde comi um linguine delicioso. Nos despedimos do pessoal e seguimos para a última parte da nossa aventura.
Foi uma noite romântica. Só nós dois, o rio, o céu, e algumas garrafas de vinho. Vida perfeita ao lado do meu amor.
Na manhã seguinte, café, locks e rumo ao lar. Sem pressa. Sem urgência. Com o coração cheio.
Não sei se foi o som da água batendo no casco, o vento leve que dançava com as águas do St Lawrence, ou as risadas que enchiam o barco de vida — talvez tenha sido tudo isso junto. Só sei que, nessa viagem, o tempo deixou de ser pressa e virou presença. Não importava o destino final, porque cada curva do rio nos presenteava com alguma coisa: uma paisagem, um silêncio bom, um pôr do sol, uma lembrança nova.
Brockville nos recebeu com história, com amigos, com cervejas e fogos de artifício. Mas o que ficou mesmo foi a sensação de completude. Como se algo que estava em pausa dentro da gente tivesse finalmente voltado a se mover.
E é por isso que viajar de barco tem esse quê de mágica — a gente vai devagar, sem certezas, mas quando chega, percebe que o melhor não foi o lugar em si. Foi o trajeto. Foi a companhia. Foi ter vivido tudo isso ao lado do meu amor, com o coração leve, o espírito grato e o mapa da vida cada vez mais cheio de pequenos e valiosos tesouros.
Já quero fazer tudo de novo. Mas mesmo que não seja igual — e nunca é —, sei que será lindo. Porque quando se navega com amor, o destino sempre vale a pena.
Porque no fim das contas, não é sobre o destino. É sobre estar ali — inteira, leve, navegando entre memórias, sorrisos e aquela paz boa que só quem ama o caminho entende.
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