Quando Eva
contou o que tinha visto, a tia disse:
- Ah isso só
pode ser bugre minha filha. Melhor você não voltar lá.
Eva não sabia o
que era um bugre e Matilda voltou para cozinha antes dela ter tempo de
perguntar-lhe do que se tratava.
Correu para o
quarto e foi procurar nos seus livros. Folheou diversos sem encontrar o
significava. Já estava quase desistindo quando encontrou a resposta em um
almanaque que havia sido distribuído na colônia há algum tempo.
Bugres eram
índios, pessoas que habitavam aquelas terras antes dos colonos chegarem ali. O
almanaque dizia que eles atacavam os colonos, que faziam flechas com pontas de
pedras, que viviam da caça, da coleta de frutos e da pesca. Tinha até um
retrato: tinham a pele mais escura, e os cabelos pretos e lisos. Eva foi dormir
intrigada.
No dia
seguinte, ela mal podia esperar a hora de ajudar a tia a tirar a mesa do café
para correr até o rio. Levou consigo o chapéu de seu pai e, em uma bolsa uma
calça que tinha feito há algum tempo, pois não gostava de andar de saia no
mato. Trocou a roupa e guardou a sacola, para depois trocar novamente antes de
voltar para casa.
Ela já estava
escondida no mato há quase uma hora, quando ouviu passos, vindos mais ou menos
da direção de onde tinha visto os olhinhos no dia anterior. Os passos foram
ficando mais audíveis. O som competia com o das batidas fortes de seu coração
acelerado. Foi quando uma mão se colocou levemente em seu ombro. Seu coração
quase parou por um momento. Em um segundo se fez muitas perguntas:
-
Quem seria?
-
Sua tia teria a pego de calça no meio do mato?
-
Seria um bugre?
Quando ela se
voltou para trás viu uma menina, de cabelos lisos e escuros, de pele da cor de
pinhão, seminua e que colocava o dedo indicador em frente a boca, pedindo que
Eva ficasse em silêncio.
-
Meu Deus! Era um bugre!
Eva viu nos
olhos da menina que não precisava sentir medo. A garotinha parecia mais
assustada do que ela mesma. Em seguida, um menino menor que a menina, saiu do
meio do mato, onde os dois pareciam estar escondidos. A menina puxou Eva
pedindo para que ela se abaixasse e os três ficaram ali, acocorados e em
silêncio, até que um disparo de arma de fogo foi ouvido. Eva tremia e os dois
indiozinhos começaram a chorar.
O menino
levantou a cabeça e com um gesto chamou a menina. Eva não conseguiu identificar
para onde eles estavam olhando e então percebeu que eles voltaram para o meio
do mato. Ela ainda permaneceu alguns instantes ali, ainda sem entender o que
acabara de acontecer. Foi então que se deu conta de que o tiro também poderia
ter sido ouvido na casa dos tios e se apressou em apanhar a saia e retornar.
Ao chegar em
casa seus tios estavam à sua procura e correram ao seu encontro ao avistá-la.
Tia Matilde disse que Martinho Bugreiro estava por perto:
- Ele anda pelo
meio do mato caçando os terríveis bugres.
Nesse momento
tudo ficou claro na cabeça de Eva. Os índios estavam fugindo dele, o bugreiro,
é claro! Ele estava caçando-os.
No dia
seguinte, Eva foi novamente para o local do encontro, ficou lá por horas, mas
as crianças não apareceram.
No domingo,
como de costume, ela e os tios foram para a missa na igreja na Vila do
Barracão. Lá o assunto era um só: todos falavam sobre as proezas de Martinho
Bugreiro.
O frei daquela
igreja era muito amigo de Albert e Matilda, tinha um carinho especial por Eva e
sempre que a via na missa, ia conversar com a menina.
E ela logo foi
perguntando quem era esse tal de Martinho Bugreiro, caçador de índios.
O frei explicou
que Martinho era um homem pago pelo governo para matar os bugres que
perturbavam e até mesmo matavam os colonos. Eva não entendia como poderia
parecer certo para o governador, pagar alguém para matar os donos da terra, mas
aparentemente todos os outros achavam isso correto.
Na saída da
missa ela ouviu de seu Mathias, o dono da venda, uma história contada de uma
forma bem dramática:
- O ataque aos
índios pelo bando de Martinho segue sempre o mesmo ritual. Os bugreiros
perseguem o grupo a que desejam dar cabo e depois de encontrá-lo, ficam
acantonados durante horas, sem conversar ou fumar, esperando o melhor momento
para surpreender os índios em um ataque fulminante. Esse momento, é
normalmente, quando o dia está para nascer. Enquanto os bugres estão entregues
ao sono mais pesado, é que se dá o assalto.
Eva se
aproximou para ouvir melhor o que seu Mathias falava.
- Primeiro
cortam as cordas dos arcos, depois iniciam a matança. Acordados a tiros e a
golpe de facão, os índios não têm qualquer chance de defesa. Os bugreiros
costumam dizer que cortar carne de bugre é igual a cortar bananeira, pois ambas
são bem macias. Após matar todos os homens adultos, prendem e levam para a
capital as mulheres e crianças. Antes disso Martinho ainda corta as orelhas dos
mortos, e as coloca dentro de um pacote de couro com sal e leva ao governo para
dar provas do trabalho feito e receber a recompensa.
Eva terminou de
ouvir a história com os olhos arregalados. E concluiu que, Martinho Bugreiro
era um homem terrível!
Ao voltar para
casa passou a tarde toda perto do rio, esperando encontrar os bugrinhos. Só
retornou quando a noite já estava caindo; eles não apareceram. Então depois de
jantar ela foi para o quarto. A noite estava bem clara, da janela ela podia ver
a lua cheia, muito bonita no céu.
Todos costumam
dormir com a janela aberta nas noites quentes do verão e, para se proteger dos
mosquitos, em toda cama tinha um mosquiteiro, e era através dele que Eva
observava a lua e tentava imaginar onde seus amigos poderiam estar. Adormeceu.
No meio da
noite ela foi acordada por um “psiu, psiu”. Abriu os olhos, mas não conseguiu
ver nada. Já estava quase adormecendo novamente quando olhou para a janela e
percebeu a silhueta da indiazinha que lhe fez sinal com a mão, chamando-a para
a rua. Calçou os tamancos, pegou o chapéu e, de camisolão branco, pulou a
janela e se colocou ao lado da menina.
A indiazinha
puxou Eva pela mão, que a princípio ficou tensa e não andou, porém logo depois,
aquilo dentro dela que sempre pedia por aventura fez com que suas pernas se
movessem acompanhando os passos apressados atrás da menina.
Eva não
conseguia entender o que a menina falava, aquilo não era alemão, nem português,
e achou que poderia ser tupi. Lembrou que no almanaque dizia que os índios
também tinham línguas próprias e uma delas era o tupi. Quando Eva se deu conta
elas já estavam no meio da mata fechada e a índia fez um sinal para que
parassem e mandou observar uma espécie de clareira. Ali havia uma fogueira,
alguns homens bebendo e em um canto amarrado, reconheceu o indiozinho que tinha
visto junto com a menina no rio, e ficou perplexa.
Os olhos da
menina estavam cheios de lágrimas e Eva, mesmo sem saber uma palavra sequer em
tupi, usou um gesto que pode ser compreendido em todas as línguas: Abraçou a
nova amiga! E, mesmo sabendo que não seria compreendida, disse: “Tudo vai ficar
bem”.
Eva então teve
ideia de usar a mesma tática dos bugreiros, para salvar o menino. Ela pretendia
ficar, então, escondida até que eles pegarem no sono, para depois atacar. Mas,
como uma menina de doze anos e uma indiazinha, sozinhas, iriam atacar um bando
de oito homens malvados e armados? Ela pensou em chamar o tio para ajudar, mas
certamente ele nunca viria.
Eva observou
tudo. Viu algumas armas em um canto. Mas no entanto ela não sabia atirar e
jamais teria coragem de fazê-lo. Viu também um saco com pólvora perto das armas
e teve uma ideia. Com sinais pediu ajuda para a indiazinha e a menina
sorrateiramente se arrastou e trouxe o saco de pólvora.
Aguardaram até
que todos dormissem, o que demorou a acontecer, pois ficaram por muito tempo
bebendo vinho e pinga. Eva tirou seu chapéu e deixou escondidinho atrás de uma
pedra. A primeira coisa a fazer seria soltar o menino e sair em disparada para
casa, imaginava a pequena aventureira.
Assim que o
bando adormeceu as meninas foram pé ante pé sem fazer barulho até onde estava o
menino e cortaram, as cordas que o prendiam. Quando os três estavam saindo um
galho se quebrou sob seus pés e o ruído acordou um dos homens de Martinho. Eva
olhou para os lados e já não viu mais os índios. Agora sozinha precisava
colocar em prática a segunda parte do seu plano. Em uma fração de segundos
pegou um punhado de pólvora e jogou na fogueira; provocando uma série de
explosões, faíscas e muita fumaça. O barulho acordou os homens que ficaram
desnorteados. sem dar tempo deles se recuperarem, Eva jogou mais dois punhados de pólvora no meio da fogueira
e atirou o saco, bem próximo do fogo. Enquanto corria por trás da nuvem de
fumaça, tropeçou em uma sacola de couro com um cheiro muito ruim e percebeu que
deveria ser o saco onde Martinho guardava as orelhas dos índios para pedir o
pagamento junto ao governo. A menina não pensou duas vezes e carregou a sacola
consigo, apanhou o chapéu e correu para casa. Já longe da clareira ainda ouviu
uma grande explosão, que só poderia ter sido provocada quando o fogo atingiu o
resto da pólvora. No meio do caminho encontrou os dois indiozinhos e os três
seguiram juntos até a casa de Eva. Chegando lá, escondeu a sacola na rua e
pretendia levar os índios para dentro de casa, porém foi surpreendida por sua
tia na janela de seu quarto. Quando os índios avistaram a tia, correram para se
esconder.
Matilda estava
com cara de poucos amigos e olhando para Eva falou:
- O que você
aprontou?
A menina não
vacilou e contou toda a história. A cada palavra, a tia ficava mais pálida, não
acreditando na loucura que menina fez ao se aproximar de assassinos como
aqueles. No final Eva implorou para que sua tia aceitasse que os indiozinhos
ficassem com eles, pelo menos por aquela noite. A tia falou que era cristã e
que apenas por aquela noite acolheria as crianças, mas antes, teriam que dar
fim na sacola de couro de Martinho.
Eva chamou os
indiozinhos, que foram até ela cheios de receio, a tia olhou escabreada, mas
teve seu coração amolecido quando o garotinho agarrou sua perna e deu um
suspiro.
Pegaram então
uma enxada e foram enterrar a sacola. Não abriram para ver quantos pares de
orelha estavam lá dentro, mas os indiozinhos choravam, pois, certamente boa
parte de sua família foi dizimada pelos bugreiros.
O dia seguinte,
nem bem tinha amanhecido e o tio Albert, que dormiu como uma pedra enquanto
tudo aquilo acontecia, já estava a caminho da vila, para comprar mantimentos
que faltavam em casa. Quando retornou, contou que no Barracão só se falava em
uma coisa: O bando de Martinho Bugreiro saiu da cidade apressado no meio da
noite. Diziam que um fantasma envolto em nuvens negras do mal, invadiu o
acampamento e lutou com Martinho, roubou seu saco de orelhas e desapareceu no
breu da mata.
Ao ouvir a
história a tia e a sobrinha apenas se entreolharam e disfarçaram a risada.
Matilda se levantou pegou o marido pela mão e disse que precisava conversar com
ele, abriu a porta da dispensa e chamou:
- Ceci! Sabú!
Venham aqui.
E lá de dentro
saíram os dois indiozinhos, Albert, levou um susto e com os olhos procurou pela
espingarda. Antes que ele pudesse fazer qualquer movimento, Matilda o segurou
forte e disse firmemente:
- Eles são
irmãos e vão morar aqui, não têm mais família e como uma cristã eu não posso
deixar duas crianças viverem sozinhas no meio da mata.
Eva não
conseguia conter a alegria. Albert até tentou falar alguma coisa, mas viu nos
olhos da mulher; que ela estava decidida. Se até agora nunca na vida ele
conseguiu tirar alguma ideia da cabeça dela, não seria dessa vez.
Sabú correu
para o colo de Matilda, Ceci e Eva se abraçaram. Albert apenas enrolou o bigode
e viu em cima de uma cadeira a camisola branca de Eva, toda suja de carvão e
parecendo meio chamuscada. Em um tom
meio irônico disse:
- Eva, espero que
você não tenha nada a ver com a história do fantasma que botou o bando de
Matinho para correr.
11 Comentários
1 Nicolly: As palavras que Eva conhecia era, arara, tucano, perereca, jabuti, pipoca, mandioca, abacaxi, jararaca, tatu, sagui...
ResponderExcluir2 Nicolly: O nome dos amigos índios de Eva eram Ceci e Sabú.
ResponderExcluir3 Nicolly: Eva conheceu, cachoeiras, imensos morros, campos, tocas, cavernas, as flores mais bonitas do Barracão.
ResponderExcluir4 Nicolly: Bom no século XVII muitos jesuítas andavam por esses campos, transitando entre a serra e o Litoral com alguns "tesouros" consigo: ouro, prata, objetos preciosos... Muitas vezes, eles eram encurralados por saqueadores ou até mesmo por alguns brugres e para não perder seu tesouro acabavam o enterrando, para tentar salvá-lo e resgatá-lo mais tarde. Acontece que as vezes essas pessoas perdiam a vida e nunca conseguiam pegar de volta os seus tesouros das profundezas da terra, então anos mais tardes esses mesmos tesouros são encontrados por pessoas comuns, que acabavam assim fazendo com que outras pessoas também procurem por essas riqueza deixada pelos padres, como são chamados pelo povo.
ResponderExcluir5 Nicolly: Quando os 3 rios se encontram , onde os rios se juntam e siga o rio Caeté sem se preocupar com os afluentes.
ResponderExcluir6 Nicolly: Pois era o caminho para sua casa. Eles precisariam esperar até dia seguinte para terem tempo de chegar até o local.
ResponderExcluir7 Nicolly: não pode ser abraçado o pinheiro.
ResponderExcluir8 Nicolly: Estava escrito "fonte".
ResponderExcluir9 Nicolly: É um macaco.
ResponderExcluir10 Nicolly: O dinheiro foi utilizado para reconstruir a escola e o restante investido em remédios para atender os doentes que, muitas vezes, procuravam a igreja por ainda não existirem postos médicos na vila.A bíblia e o cálice, Eva deu de presente ao Frei sabendo o quanto significariam para ele.
ResponderExcluirMuito legal,as histórias de Eva.são importantes, para conhecer as histórias que aconteceram no passado. Muitas são tristes ,mas faz parte da história
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