Gertrudes ia
ganhar bebê e Tia Matilda se ofereceu para ajudar.
Ela era filha
de uma grande amiga da família. Se conheciam desde a Pomerânia. Assim que as
empresas colonizadoras começaram a organizar a vinda dos colonos para o Brasil
as duas famílias se inscreveram e foram aceitas. A viagem da Alemanha para o
Brasil não era fácil para ninguém, durava semanas e as condições a bordo dos
navios eram terríveis: muita gente, escassez de comida e muitas doenças que se
propagavam. Infelizmente a mãe de Gertrudes não sobreviveu e teve seu corpo
jogado ao mar. Ela morreu de tifu, [1]
assim com tantas outras pessoas naquele navio. Matilda para sempre carregará
nas lembranças aqueles dias de tensão em alto mar, pois todos temiam adoecer,
viam algumas pessoas queridas morrendo e temiam não conseguir completar a
viagem.
Gertudes morava
no Chapadão Demoras, teria seu primeiro filho e Matilda passaria duas semanas
por lá. Sabú ficaria com Albert e as meninas iriam junto com a tia.
Geralmente
todos iam de carroção, mas dessa vez Eva insistiu para que ela fosse a cavalo
seguindo a carroça com tia Matilda e Ceci. Albert apenas enrolou seu bigode e
meio contrariado, aceitou. Antes de saírem Eva ainda conseguiu convencer a tia
de que ela teria que ir de calças, pois não “vogava” uma moça andar a cavalo de
saias. Na verdade ela bem sabia que na opinião da tia uma mocinha nem mesmo
deveria montar como um homem em cavalos, mas como essa conversa já estava
ultrapassada, tia Matilda acabou concordando. Eva insistiu em levar o cavalo
para poderem sair e conhecer aqueles campos, que segundo ouvia, eram lindos.
Como o nome já
alertava demorava para chegar até o Chapadão das Demoras, foram horas até
chegarem e como o local ficava bem no alto o frio era muito intenso. O inverno
estava no auge.
Gertudes tinha
ganho um lindo menino, que se chamou Alfons. Enquanto o marido ia para a roça,
as quatro ficavam em casa, com o fogão a lenha a todo o vapor.
No segundo dia
no Chapadão das Demoras, Eva se
surpreendeu quando abriu a porta e viu pequenos floquinhos de neve caindo,
aquilo era lindo! Ela se sentia em sua casa na Alemanha. Chamou as outras para
ver, tia Matilda quase chorou, ela lembrou que no segundo ano que estava
morando aqui no Brasil havia nevado, mas nada como aquilo. Lembrou também que
quando os primeiros colonos chegaram ao estado construíram todas as casas em
estilo Enxaimel, com o telhado bem inclinado para a neve não ficar acumulada
nele, impedindo assim que o peso o derrubasse, não sabendo que aqui era raro
nevar.
Aos poucos a
neve foi se acumulando e transformando a paisagem em um branco sem fim. Ceci
estava encantada, nunca tinha visto neve e nem conhecia uma palavra em tupi
para descrevê-la. Ceci queria saber se Sabú também estava vendo tudo aquilo,
ela queria que o irmão também estivesse ali.
Eva e Ceci
saíram pulando pelo quintal tentando acumular neve para jogarem uma na outra.
A farra estava
grande, mas Tia Matilda pediu para que as duas entrassem, pois podiam se
resfriar.
Eva entrou e
ficou pela janela olhando os campos brancos, cobertos pela neve. Respirava um
ar gelado que parecia lhe revigorar, era um ar parecido com o de casa, parecido
com o ar que respirava quando estava junto de seu pai.
No dia seguinte
ainda existia neve, mas Ceci tinha amanhecido com a maior febrão, não deveria
estar acostumada com aquele frio. No dia que veio depois deste Ceci também
ficou na cama e Eva não podia estar mais entediada, presa dentro daquela casa
sem ter o que fazer. Resolveu que, mesmo sozinha, sairia para dar uma volta
pela redondeza.
Tia Matilda não
se agradou muito da ideia, mas deixou Eva ir, porém pediu para que a menina não
se afastasse.
Os campos eram
de se perder de vista e ela galopava. Artigas era um cavalo rápido, forte,
pulava obstáculos, passava por dentro de córregos e Eva nem via o tempo correr
enquanto o montava. Quando se deu conta estava em uma espécie de vilarejo, com
umas casas um pouco diferentes das que ela estava acostumada a ver na vila. Ela
avistou um coxo d’agua e resolveu dar de beber a seu cavalo. Enquanto Artigas
tomava água, a menina ficou analisando o local, certamente não eram colonos
alemães. Foi quando uma senhora com a pele negra como a noite e os cabelos
curtinhos e enrolados foi até a porta de sua casa e disse:
- A mocinha tá
precisando de alguma coisa?
Eva ficou um
pouco acanhada, mas foi falar com a senhora, que se chamava Severina.
Severina disse
que os outros estavam na roça e que gostava de conversar com quem passava para
matar o tempo. Eva foi logo perguntando de que país Severina tinha vindo e ela
contou que nasceu ali mesmo. Aproveitou o interesse da garota para contar toda
a história:
- Meu avô era
escravo, ele e outros estavam trabalhando na construção de uma estrada de
pedras, que ficava na Guarda Velha, um local aqui por perto. Mas era um
trabalho muito difícil, eles tinham que extrair as pedras da natureza,
cortá-las, carregá-las e assentá-las no chão, além de tudo isso o frio era
intenso, eles não tinham roupas adequadas, apenas calças e camisas finas que os
faziam passar muito frio durante a noite, e, durante o dia tinham pouca comida
para comer. Muitos escravos tinham morrido naquela empreitada. Eles estavam a
serviço do exército imperial e a qualquer sinal de cansaço iam para o chicote,
acusados de estarem fazendo corpo mole.
Severina
continuou:
- Em uma noite
os negros armaram uma fuga, assim ficariam livres e não teriam que trabalhar
naquelas condições desumanas. Na calada da noite seguinte, um grupo deles fugiu
levando consigo o que podiam, para reconstruir a vida em outro local. Andaram a
noite toda até que encontraram um lugar onde pudessem ficar escondidos e com
terras boas para que pudessem plantar. Aos poucos foram construindo suas casas
e buscando alguns parentes em outros locais. O lugar era uma espécie de
Quilombo, um local de resistência negra contra a escravidão. Os negros que
nasceram ali, antes da Lei Áurea, já eram livres e viver naquele local era como
uma oportunidade de iniciar uma nova vida, onde brancos e negros eram
igualmente livres.
Eva ficou
encantada com a história, gostava de gente forte e que lutava por seus
direitos, então, não tinha como ela não simpatizar com a gente de Severina.
Quando ela já estava indo embora, avistou de longe um homem e dois meninos
vindo com ele. Eram o filho e dois dos netos da senhora. Dona Severina falou:
- Fica fia,
tome um café com a gente e se você quiser os meninos podem até bater um tambor
para você.
Eva ficou curiosa - O que seria bater
tambor?...
Ficou, tomou
café e os dois meninos pegaram um objeto em forma de cubo, com couro de boi
esticado e amarrado em uma das extremidades e um pedaço de madeira com couro
grosso, dobrado e amarrado em uma das pontas. Com a ponta do pau que tinha um
couro eles batiam em outro couro esticado e faziam um barulho em um ritmo que
era impossível ficar parado. A medida que eles batiam o tambor dona Severina e
seu filho começaram a cantar em uma língua estranha. Eles dançavam também de
uma maneira diferente, remexendo o corpo e os quadris. Eva achou aquilo tudo
muito interessante. Dona Severina contou que a dança e o batuque foram
aprendidos com seus antepassados e pertenciam a rituais de festejos africanos.
Eva queria aprender a tocar tambor, mas já estava escurecendo e ela tinha que
voltar para casa. Se despediu dos novos amigos e montou em Artigas para
retornar. Ela disse que estava indo para casa de Gertrudes, mas que se fosse
possível voltaria outro dia para conversarem.
Ela estava
galopando e o som dos tambores ainda estavam tocando em sua cabeça. Estava
distraída quando de repente, em uma encruzilhada, se deu conta de que não sabia
qual rumo tomar. Ela voltou um pouco pelo mesmo caminho do qual estava vindo,
mas percebeu que existiam vários caminhos secundários e ela não fazia ideia de
por onde tinha chegado até ali. Resolveu pegar um deles e seguir, mas ele
acabou em um descampado que ela nunca tinha visto antes. Estava perdida.
A noite já
estava se fechando ao seu redor, o frio era intenso e Eva, sempre tão corajosa
estava começando a ficar assustada com a possibilidade de não encontrar o
caminho para casa. Ela continuou andando, o cavalo cambaleava, não conseguindo
ver o chão no qual pisava, um galho bateu com força em seu rosto. Estava muito
escuro, ela também não podia enxergar e assim sendo resolveu que não tinha
solução, ela teria que descer do cavalo e procurar algum abrigo.
Existiam
barulhos pelo mato. Eva estava com medo de ser atacada por algum animal
selvagem já que eram muitos os boatos de ataques de Leão Baio por aquelas
bandas.
Suas mãos e
seus pés estavam congelando. Parecia que seus dedos iam cair de tanto que doíam
devido ao frio. Ela amarrou o cavalo e sentou encostada em uma árvore, se
encolheu tentando manter seu corpo aquecido.
Para piorar ela
viu pequenos floquinhos de neve caindo, não nevava tão forte como no dia
anterior, mas aquilo só contribuía para o frio aumentar. Eva não sabia o que
fazer, não conseguia enxergar para tentar encontrar o caminho para casa, além
de ser arriscado sair no meio daquele breu.
Ela ouviu um
barulho que parecia com um bicho grande andando no meio do mato. Sentiu falta
de Ceci e Sabú, eles certamente saberiam que bicho era.
Uma tensão
pairava no ar, parecia que o bicho estava se aproximando, então ela resolveu subir
na árvore para tentar se proteger. Lá de cima pôde ver que era uma espécie de
gato gigante que a observava por trás de alguns arbustos. Ela e o gato, que só
poderia ser um Leão Baio, se encaravam. Artigas relinchava e pinoteava até que
se soltou e saiu correndo, certamente sentindo a presença do predador. Agora
era só ela e o leão. Ela começou a implorar mentalmente para que aquele bicho
não soubesse subir em árvores. Aos poucos ele ia se aproximando. Parecia que o
frio até tinha diminuído. Eva suava. A neve ainda caia fracamente.
O leão começou
a passar as unhas no tronco da árvore. Eva tentou subir até o mais alto galho
que conseguiu, mas acabou colocando seu peso em um galho muito fraco, que cedeu
e fez com que ela caísse. Ela caiu ao lado do bicho, que primeiro se assustou
com o barulho da queda, mas logo se aprumou e partiu para o ataque. Eva já
estava de olhos fechados, aguardando seu fim, foi quando um tiro espantou o
bicho.
Ao abrir os
olhos Eva viu a figura de um militar, era um soldado; parecia ser bastante
jovem e usava um bonito uniforme azul.
Ele perguntou
se ela estava bem e ela disse que sim, se levantando com dificuldade.
O soldado se
aproximou e disse:
- Meu Deus
menina, você vai congelar nesse frio e com tão pouca roupa.
Ele tirou de
dentro da mochila um pala de lã e colocou sobre Eva que disse:
- O que era
aquilo? O que você faz por aqui?
E ele
respondeu:
- O animal era
um Leão Baio, ele geralmente sai para caçar a noite e hoje você era a presa
dele... Eu sou um soldado e meu regimento está passando aqui por perto, ouvi um
barulho de cavalo e vim ver o que era.
Eva respondeu:
- Muito
obrigada, o senhor me salvou, tenho agora que encontrar meu cavalo e encontrar
o caminho para casa.
Ele disse:
- Não se
preocupe, hoje é seu dia de sorte, pois irei te ajudar.
Ele deu a mão
para Eva e continuou falando:
- Minha nossa,
seus dedos estão congelados, antes da gente sair é melhor eu acender uma
fogueira e você se aquecer. Tenho também água e panela aqui para te fazer uma
bebida quente, depois a gente segue.
Ele catou
alguns galhos secos e fez uma fogueira. Foi difícil, pois a neve tinha molhado
a madeira.
O fogo finalmente
fez Eva voltar a sentir suas mãos e seus pés e o pala do soldado a ajudava a se
manter aquecida. Ele deu uma bebida quente para Eva tomar antes de saírem a
procura do cavalo. Andaram um pouco e já viram o animal, porém quando o mesmo
olhou para Eva e o soldado, saiu relinchando e assustado. Eva não entendeu, ele
costumava sempre vir a seu encontro e não sair daquela maneira. O soldado a
acalmou:
- Não se
preocupe, a gente encontra ele e se o Leão Baio aparecer ele corre.
Enquanto
caminhavam o soldado lhe contou sobre uma guerra da qual lutou, contra o
Paraguai[2].
Os brasileiros haviam vencido, porém ele não se sentia feliz pelo que fizeram
com o país vizinho, não gostava de servir, lutar, matar outras pessoas; tinha
sido obrigado a combater, mas agora queria ser dispensado e finalmente se casar
com uma menina pela qual ele era apaixonado.
A medida que
andavam a neve ia aumentando. Aos poucos o frio começou novamente a tomar conta
do corpo de Eva. Seus tamancos não aqueciam seus pés, que estavam completamente
molhados por causa da neve. Eva batia o queixo de tanto frio e começou a ter
dificuldades para respirar e andar. O soldado a pegou no colo.
Eva acordou no
dia seguinte, na casa de dona Severina. Ela não sabia como havia ido parar ali
e meio desnorteada perguntou:
- Como eu vim
parar aqui?
E dona Severina
disse:
- Eu não sei minha fia, ouvi alguém batendo na
porta e quando abri você estava caída, dura de frio, então te coloquei do lado
do fogão a lenha, te cobri com um acolchoado de lã de carneiro e aos poucos sua
cor foi voltando, achei que você fosse morrer! O que aconteceu?
Eva tentou
puxar pela memória e contou que foi ajudada por um soldado que estava por perto
com seu regimento, que ele tinha a salvo do Leão Baio e estava tentando ajudar
ela a encontrar o caminho de casa. dona Severina ficou intrigada com a história
da menina e disse:
- Olha minha
fia, o último soldado que teve por aqui morreu, tem até uma cruz mostrando o
lugar onde o pobrezinho pereceu, coisa triste!
Eva ficou um
pouco confusa, ela tinha certeza de que tinha visto e conversado com o soldado,
falou até sobre o que ele contou sobre a tal Guerra do Paraguai. Dona Severina
rebateu:
- Pois então
fia, eles lutaram nessa guerra, mas já faz tempo, isso não é de agora e tem
mais, se foi ele que te trouxe até aqui, porque que ele não estava junto
contigo quando abri a porta?
Eva ficou meio
sem entender o que aconteceu. Nesse momento entrou pela porta Tia Matilda e
Ceci, ambas estavam muito nervosas e assim que avistaram Eva a abraçaram-na e
choraram.
Tia Matilda
estava muito brava, mas assim que encontrou a menina trocou a fúria pela
gratidão em encontrá-la viva. Os netos de dona Severina tinham ido até a casa
de Gertrudes para chamar a tia da menina e no caminho tinha encontrado Artigas
pastando.
Tia Matilda
agradeceu muito por dona Severina ter acudido sua sobrinha e Eva lhe deu um
beijo cheio de carinho.
As três
seguiram no carroção, Eva sabia que em breve tomaria uma grande bronca de Tia
Matilda e admitiu que dessa vez a bronca seria muito merecida. Depois de uma
curva a garota avistou no meio da neve, uma cruz e pediu a tia para que parasse
a carroça:
- Só poderia ser a cruz do tal soldadinho.
Ela foi até lá
e olhou, pensando em tudo o que aconteceu na noite anterior. Ceci então lhe
chamou a atenção:
- Olha Eva,
essas marcas na árvore são de Leão Baio, parece que o danado tentou subir aqui.
Eva olhou e
reconheceu o lugar, foi daquela árvore que ela caiu, antes de ser salva. A
árvore ficava a poucos passos da cruz onde teria morrido o tal soldado. Eva
ficou pasma ao constatar aquilo e contou toda a histórias a Tia Matilda e Ceci,
que achavam que tudo devia ser fruto da imaginação da menina. No final até ela
estava achando que poderia ter sonhado tudo aquilo, foi quando um dos netos de
dona Severina chegou a cavalo e falou:
- Eva, você
esqueceu seu pala.
Nele havia um
broche com o brasão imperial. Todos se olharam e pela primeira vez Eva não
encontrou uma resposta para o que aconteceu. Mas durante toda a vida ela seria
grata aquele soldadinho que a salvou.
[1] O tifo epidêmico, popularmente chamado simplesmente
de tifo, é uma doença epidêmica transmitida pelo piolho humano do corpo e
causada pela bactéria Rickettsia prowazekii. Epidemias da doença quase sempre
estão relacionadas a fatores de ordem social, como falta de higiene e pobreza
extrema, razão pela qual são comuns em períodos de guerra e escassez de água,
campos de refugiados, prisões, campos de concentração e navios. (Fonte:
http://www.invivo.fiocruz.br)
[2] A Guerra do Paraguai foi o maior conflito armado
internacional ocorrido na América do Sul no século 19. Rivalidades platinas e a
formação de Estados nacionais deflagraram o confronto, que destruiu a economia
e a população paraguaias. A Guerra do Paraguai durou seis anos. Teve seu
início em dezembro de 1864 e só chegou
ao fim no ano de 1870, com a morte de Francisco Solano Lopes em Cerro Cora.
(FONTE: www.sohistoria.com)
1 Comentários
O bom militar será disposto a ajudar, mesmo em espírito :D
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