Minha vó nasceu Flora.
Por algum motivo foi registrada Floriana, mas pra família sempre foi Flora.
Aí, já adulta e mãe de sete filhos, começou a estudar a Bíblia e decidiu que dizer um nome que não estava na certidão seria mentir, e mentir era errado.
Daí em diante, foi Floriana pra todo mundo.
Para mim, apenas "Vó" tava bom.
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Uma das minhas primeiras memórias que tenho é do sol da manhã batendo na grama molhada do quintal da casa dela. No fundo, o rádio AM ligado narrava as histórias do dia.
Enquanto meus pais trabalhavam, eu ficava sob os cuidados dela. Passava os dias batucando nas suas panelas, brincando de dirigir no pedal da máquina de costura, pilotando navios na máquina de fazer macarrão.
Enquanto isso, ela limpava a casa, molhava a horta, plantava alguma coisa, colhia alguma coisa, passava veneno, lavava roupa, pendurava no varal.
As mãos da minha avó nunca paravam.
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E que mãos!
Grossas, mais grossas que as minhas, de quem sempre trabalhou pesado, de quem sempre plantou o que comeu. Unhas curtas, sem vaidade. Mãos como não se fazem mais hoje em dia.
Grossas, mais grossas que as minhas, de quem sempre trabalhou pesado, de quem sempre plantou o que comeu. Unhas curtas, sem vaidade. Mãos como não se fazem mais hoje em dia.
Mãos que tornavam qualquer comida mais gostosa com só um toque.
Mãos que folheavam a Bíblia de letras miúdas, um pouquinho por dia, todas as tardes.
Mãos fechadas de artrite, fechadas, como que pelo hábito de quem passou muito tempo tendo muito pouco.
Mãos que não estavam muito acostumadas a fazer (ou ganhar) carinho.
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Minhas lembranças dela tem gosto.
Sopa de arroz.
Sopa de feijão.
Picolés de suco.
Cueca virada.
Polenta na chapa.
Rúcula recém-colhida.
O pão sovado que me arrancou todos os dentes de leite.
Sopa de feijão.
Picolés de suco.
Cueca virada.
Polenta na chapa.
Rúcula recém-colhida.
O pão sovado que me arrancou todos os dentes de leite.
Não tinha nada que aquelas mãos não fizessem.
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Por mais que eu a tenha conhecido por toda a minha vida, só tive vislumbre de uma fração do que ela viveu.
Sei que, aos vinte e sete anos, ela já tinha perdido dois filhos pequenos.
Se você olhar uma foto dela aos vinte e cinco anos, uma aos vinte e nove e uma foto aos setenta, a aparência das duas últimas vai ser muito mais próxima do que a das duas primeiras. As rugas de sofrimento já estavam lá, todas de uma vez só, marcando que a vida não ia ser fácil.
Na primeira vez que usei óculos na vida, fui correndo até a casa dela pra mostrar a novidade. Olhei a cara dela e estranhei:
"Nossa, vó, como a senhora tem ruga!"
(Só os cabelos que eram um capítulo à parte: nunca pintados na vida, sem um fio branco que seja, lisos como espaguete recém-saído da panela. Cortados com tesoura de costura, sem vaidade, mas sempre elogiado por todo mundo)
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Se você não teve a chance de conhecer a minha vó, sinto muito.
Não é todo mundo que tem uma história de vida dessas pra contar.
Vida sofrida de largar tudo pra trás uma, duas, três vezes para começar de novo e tentar uma vida digna. De deixar tudo o que ama pra trás para que meus tios, para meu pai, tivessem mais chance de viver bem, pra que hoje eu pudesse estar aqui escrevendo esse texto de barriga cheia.
Vida sofrida de largar tudo pra trás uma, duas, três vezes para começar de novo e tentar uma vida digna. De deixar tudo o que ama pra trás para que meus tios, para meu pai, tivessem mais chance de viver bem, pra que hoje eu pudesse estar aqui escrevendo esse texto de barriga cheia.
Foi uma honra poder compartilhar um pouco da minha vida com ela.
Eu existi pra ela, ela existiu pra mim, e isso me dá orgulho. Saber que aquelas mãos me guiaram, saber que eu tenho um pouco da força dela, tudo isso me dá orgulho.
Ter a honra de poder sentir saudades de uma pessoa tão sensacional me dá orgulho.
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Floriana Gayeski Komonski, rosto doce, sorriso fácil e jeito discreto.
Deixa cinco filhos, cinco netos e uma saudade muito, muito grande.
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