Eva Schneider em: O mistério da bica d'água


Eva Schneider em:
O MisTÉRio da Bica d
Água

Fazia duas semanas que Ceci havia optado por ficar na tribo de Pequi. Matilda chorara por três dias sem parar. Albert não se conformava, queria ir até a tribo e pegar a “filhinha”. O frei precisou intervir e alertar que isso seria muito perigoso. Eva e Sabu se culpavam, pois achavam que deveriam ter insistido, não permitindo que a menina ficasse lá.
A família não era mais a mesma sem a indiazinha. Para Eva, nada tinha graça, pois Ceci fazia falta em tudo. Sabu se via abandonado e quase não conversava com ninguém. O menino ia ficar doente. Bijuca, sentindo a tristeza de todos, também voava cabisbaixa, triste, desanimada.
Preocupado com a situação das crianças, o frei convidou-as para passarem uns dias na casa paroquial com ele. A escola do Barracão ficava próximo à igreja, então o frei falaria com a professora para que os dois assistissem algumas aulas, se distraíssem e tivessem contato com outras crianças.
Para espanto do frei, Eva e Sabu não se empolgaram como de costume diante do convite. Mas mesmo assim, concordando que poderia ser bom, Matilda e Albert permitiram que eles fossem com o frei para ficarem lá por alguns dias. Bijuca ficou no sítio e Albert se comprometeu a cuidar bem da ave.
No primeiro dia eles foram até a escola pela manhã e brincaram com as outras crianças na hora do intervalo. Sabu era muito bom jogando quilicas e ganhou muitas delas dos seus colegas. Algumas meninas vieram conversar com Eva, mas não adiantava, nenhuma era tão legal quanto Ceci.
Sabu fez um amigo e o apresentou. Ele se chamava Pedro e morava ali por perto. O pai de Pedro tinha uma charqueada[1] que ficava ali pertinho da escola, assim como a casa do menino. Muito falador, Pedro contou para Sabu que era um caçador de fantasmas e que desvendava mistérios. Ouvindo isso, é claro que Eva ficou interessada e quis saber das aventuras do menino. Ele disse que às vezes ia até o cemitério à noite e já tinha visto coisas que “até Deus duvida”. E que, apesar de ser muito corajoso, o único lugar que ele não se atrevia a ir à noite era até a tal da bica d’água, que ficava ali pelo Sombrio.
Eles passaram a tarde inteira brincando juntos. A mãe de Pedro era uma grande amiga do frei e sabia o que havia acontecido com Ceci. Tentando ajudar as crianças a se distrair, convidou-as para passarem a noite na casa dela e assim eles poderiam brincar até mais tarde.
A casa de Pedro ficava próximo à bica. A noite, Eva olhou pela janela e disse:
– Eu não tenho medo de ir até lá.
Pedro duvidou de Eva e provocou-a dizendo que à meia-noite ela teria que provar. Ela topou na hora, Sabu se animou e Pedro, para não passar por medroso, disse que se eles realmente fossem, iria também.
Não havia água encanada na comunidade do Sombrio. Todos pegavam a água que escorria pelo paredão de pedra e formava uma pequena fonte. Este era o lugar conhecido como bica d’água, que muitos acreditavam ser mal-assombrado[2].
Era uma noite sem lua, muito escura, fazia calor e, devido à estiagem, a água escorria devagar. Era apenas um fio.
Quem assombrava e assustava os moradores, diziam, era o cão encantado, o cão fantasma. Anoitecia, e as mulheres fugiam da tarefa de pegar água. Comentavam que enquanto esperavam para encher o segundo balde na bica, o cão aparecia e bebia toda a água do primeiro.
As crianças chegaram à bica e ficaram à espreita por bastante tempo, mas nada aconteceu. Eva, entediada e achando que aquilo tudo era uma grande bobeira, falou em tom de gozação:
– Ó cão maldito, te invoco! Venha até a bica.
– Você é louca? O que tá fazendo?
– Ora, ora, vamos para casa. Não tem nada por aqui.

Logo que colocaram os pés na estrada, deram de cara com um bicho preto, grande, com chiado na respiração, parecendo cansado. Seria um cachorro? Ficaram em dúvida. O animal passou a segui-los. Eva parou, pegou um torrão de barro da beira do caminho e jogou, bem de perto, no bicho. Para seu espanto o torrão não atingiu o bicho, que continuava a segui-los. Pedro, com medo, benzeu-se e rezou. Os três caminhavam, ele caminhava; eles paravam, ele parava. Não sabiam o que fazer. De repente, sem mais nem menos, o bicho passou para a frente das crianças e entrou em uma roça de milho recém-colhida.
Assim que o cachorro virou as costas elas correram desesperadas para casa, trancaram todas as portas e se jogaram na cama. Era uma casa grande, por isso a mãe de Pedro tinha colocado cada criança em um quarto.
Devia ser umas três horas da madrugada quando Sabu bateu à porta de Eva dizendo que não conseguia dormir porque ouvia um barulho forte, vindo do sótão, e que queria dormir na cama com ela.
Pela manhã, no café, todos ainda estavam muito assustados com o que haviam passado na madrugada. Eva perguntou a Pedro por que ele tinha retirado o quadro que estava pendurado no quarto, perto da porta. O menino disse que nunca houve quadro algum por ali.
Eva perguntou a Sabu se ele havia visto o retrato, e ele também disse que não. Entre surpresa e amedrontada, Eva contou o que aconteceu:
– De madrugada, quando Sabu veio para a minha cama, acordei e vi o quadro na parede. Era uma pintura bem grande de um homem aparentando uns quarenta anos, cabelos e bigodes avermelhados, chapéu-panamá na cabeça, com um colete marrom de onde pendia uma corrente de ouro atravessando o peito de bolso a bolso, dando a entender que era um relógio. Ele estava sentado e ao seu lado havia um enorme cachorro preto.
Pedro disse que nunca tinha existido nenhum quadro daquele tipo em sua casa.
            Intrigada, Eva procurou então dois moradores mais antigos, seu Jorge Franz e seu João Zilli, com o propósito de obter informações sobre a bica e sobre outros estranhos acontecimentos na vila. Ela precisava de respostas, pois tinha certeza do que havia visto.
            Os homens disseram que nessa casa, onde morava a família de Pedro, tempos atrás funcionava uma pousada para os viajantes. E justo nessa casa foi morto um hóspede, homem bem-apessoado e aparentemente rico. Depois de morto e roubado, esconderam o corpo. Foi na época da construção da ponte de madeira Emílio Kuntze. Investigadores contratados pelos familiares trouxeram um retrato para mostrar ao povo e conseguir algumas informações.
Eva perguntou se eles lembravam como era o homem.
            – Eu não lembro muito, pois já faz bastante tempo. Mas recordo de ser um sujeito robusto, ruivo e com barba.
Disse seu Jorge Franz.
            A descrição batia exatamente com o homem no quadro que ela tinha visto na noite anterior.
            Os dois continuaram a contar que, como muitos hóspedes saíam antes do amanhecer, os donos da pousada não sabiam o que dizer a respeito do desaparecimento do sujeito. Ninguém da comunidade sabia de nada. E o caso ficou por isso mesmo.
            Os homens também relataram a Eva que antigamente naquela bica d’água havia um banhado onde as pessoas atolavam os pés quando iam buscar água. Quando estavam fazendo a vala para secar o banhado encontraram um esqueleto, cujo vestuário era de boa qualidade. Tinha um casaco de couro e um chapéu-panamá, o que mostrava ter sido um homem de posses.
            Eva não precisava ouvir mais nada, já sabia o que estava acontecendo.
            Não existia coincidência nenhuma. O homem encontrado na bica era o mesmo do retrato que havia aparecido para Eva na casa de Pedro. E o cachorro que eles haviam encontrado na bica d’água só poderia ser o que aparecia com o homem no retrato. Meu Deus, eles tinham mesmo visto um fantasma!
            Eva contou tudo aos outros e eles concordaram com ela. Ela achou tudo aquilo muito estranho. O cachorro não era mal, mas o que ele queria? Ele não era uma ameaça.
            A menina ficou um tempão matutando, matutando, enquanto Pedro e Sabu se distraíam jogando quilicas, já que era sábado e não havia aula.
            De repente Eva levantou-se e disse:
            – Já sei. O Cachorro está querendo nos mostrar algo. Temos que voltar lá hoje à noite.
            – Você tá maluca? Se a gente já sabe que ele é um fantasma, para que voltar lá?   Perguntou Sabu, incrédulo com a proposta da amiga.
            – Você é doida, Eva? E vai que dessa vez ele nos ataca?
Rebateu Pedro.
            – Se ele nos atacar, a gente corre ué!
Disse a menina.
            – Não, eu não vou. Não adianta nem insistir.
Falou Pedro.
           
Eva não perdoou e disse esbravejando:
– Nossa! Não era você o caçador de fantasmas? O aventureiro do cemitério? Acho que você é um cagão, Pedro, e se você não for vamos sozinhos.
           
Sabu sabia o que isso significava. Ele sabia que pela reação da menina não teria saída. Teria que a acompanhá-la até a bica, pois quando ela colocava algo na cabeça era muito difícil conseguir tirar.
           
Vendo que Pedro não teria coragem de acompanhá-los a menina disse:
            – Vamos embora Sabu, não quero mais brincar com meninos sem palavra, que mentem que são caçadores de fantasmas mas têm medo de um cachorrinho.

Eva estava sendo cruel, pois na verdade não se tratava de um cachorrinho e sim de um imenso cachorro fantasma.
            Pedro ainda tentou argumentar, mas Eva deu as costas, pegou suas coisas e voltou para a igreja. Ela e Sabu combinaram que perto da meia-noite sairiam para ir até a bica. Tinham que sair de casa sem que o frei percebesse. Mas não teriam problemas quanto a isso, já que ele tinha um sono pesado.
            A noite estava muito escura e não existia uma viva alma pela rua. Sabu segurava uma vela para iluminar o caminho sem muitas casas da igreja até a bica. Em uma curva escura, pulou algo do mato.
            – Achei que vocês não vinham!
            – Peeeeeeeeeeeeedro! Quer me matar do coração?
Falou Eva, se recompondo do susto.
            – Ué, não é você a menina corajosa que não gosta de andar com cagões? Está com medo?
            – Ahh! É diferente!
            – Bom, vamos pegar o fantasma?
            Pedro tinha repensado e resolveu que ajudaria a descobrir qual o mistério da bica.
            Chegando no local Sabu disse:
            – E agora, a gente faz o quê?
            Eva respondeu:
            – Nós esperamos! Ele há de vir.
            O tempo passou e nada do animal aparecer. A bem da verdade Eva estava começando a suspeitar que o bicho não viria. Foi quando começou a baixar uma densa neblina. O silêncio imperava e, ao longe, começaram a ouvir um chiado de respiração e um vulto apareceu na bruma. Era ele, era o cachorro do retrato!
            Eva ficou imóvel, tentando controlar seu medo e não correr. Pedro puxou um crucifixo e um rosário do bolso e começou a rezar a Salve Rainha. Sabu, branco de medo, manteve-se estático mas pronto para correr a qualquer instante.
            O bicho continuou vindo em direção aos amigos, passo por passo, até se colocar bem na frente de Eva, que gaguejando falou:
            – O ooi, tuuuuu tu-tu-tu-tu-tu tudo bem? O que vo vo-vo-vo-cê você quer com a gente?
            O bicho olhou fixo para os olhos da menina e quando ela fixou o olhar nos olhos do animal viu labaredas de fogo no lugar das pupilas. Virou estátua. O animal, calmamente, deu as costas e seguiu para a roça de milho. Os três se entreolharam. O cão parou, olhou para os três e adentrou no milharal.
            – Acho que ele quer que a gente o siga.
Disse Sabu.
           
O bicho atravessou a roça, parou na margem do rio e começou a cavar. Mas a terra não saía quando ele passava as patas. Ele era um fantasma.
            Bastou um olhar de Eva para que Pedro se aproximasse do cão e começasse a cavar com as mãos no lugar indicado pelo bicho. Eva e Sabu fizeram o mesmo. O cão se sentou e aguardou.
            Cavaram, cavaram e Eva tinha medo do que poderiam encontrar. Temia acharem um corpo enterrado ali.
            O buraco já estava fundo quando algo enroscou no dedo de Eva. Era uma espécie de corrente. A menina a puxou e percebeu se tratar de um relógio de bolso. “Meu Deus, era o relógio do retrato”. O cachorro abanou o rabo. Ela limpou o relógio, que parecia ser mesmo de ouro. Estava bastante sujo, mas usando a blusa Eva limpou-o e leu na parte de trás a frase: “Pertencente à família Limenkhul”.
            – O que faremos com ele?
Perguntou Sabu.
           
Eva olhou para o cachorro esperando que ele desse a resposta. O bicho saiu caminhando, olhou para trás e esperou que os três o seguissem. Caminharam até a casa do delegado, que a esta hora com certeza dormia.
Eva disse:
            – Entendi! Você quer que a gente entregue o relógio para o delegado e que ele seja entregue para a família? É isso?
            O cachorro deu dois latidos altos e abanou o rabo. Eva respondeu:
            – Tá certo, você tem minha palavra que amanhã, ao raiar do dia, entregaremos o relógio ao delegado e ele irá devolvê-lo aos Limenkhul.
            O cão encarou Eva com seus olhos de fogo, virou as costas e sumiu na neblina.
            Os três marcaram de se encontrar logo cedinho e contarem a história ao delegado. O homem a princípio não acreditou muito, mas, ao ver o relógio, se rendeu, boquiaberto. Ele disse que a família do senhor Januário Limenkhul – que era como se chamava o homem do quadro – continuava vindo pelo menos duas vezes por ano para a cidade em busca de notícias. Esse era um relógio muito valioso para a família, estava com eles há gerações e certamente ficariam muito felizes por tê-lo de volta. Quanto ao cachorro o delegado nada sabia, pois o cão não veio com Januário para o Barração. Mas soube que assim que o dono desapareceu ele morreu de tristeza. Ficou espantado ao perceber que o cachorro, mesmo depois de morto, havia encontrado seu dono. Agradeceu às três crianças dando-lhes parabéns. Disse que deixaria o caso em segredo para que as pessoas não ficassem com ainda mais medo de andar pelas ruas durante a noite.
            Já era hora de ir embora! Contaram tudo ao frei, que, como não acreditava em assombrações e sem o relógio como prova, não colocou muita fé nas crianças.
            Sabu e Eva se despediram de Pedro e ficaram felizes por terem encontrado um novo amigo.
            Frei pegou a carroça para levá-los de volta para casa. No portão já estavam Albert, Matilda e Bijuca esperando pelos três. Eles já saltaram da carroça por ali mesmo e todos se abraçaram com carinho.
            Sabu chamou atenção para uma carroça que estava vindo pela estrada. Eva se esforçou para reconhecer quem era e, à medida que a carroça se aproximava, reconheceu o filho de Heide guiando os cavalos e na parte de trás estava Heide com alguém parecendo doente, deitado em seu colo...


[1] Local onde os animais eram abatidos, espécie de açougue.
[2] A história da bica d’água foi baseada em textos contidos no livro “José de Campos – Uma história para contar”, escrito por Celita Irene Campos Angeloni.

Postar um comentário

2 Comentários

  1. Boa tarde!
    Prezada Carol
    Sou da equipe de iconografia da Editora Somos Educação. Gostaríamos de utilizar algumas imagens do seu blog . Gostaria de verificar se é possível esse licenciamento? E, se sim, como devo proceder.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Oi! Vocês podem entrar em contato pelo meu email: karol.aw@gmail.com
      Conversamos por lá, pode ser?

      Excluir