Eva acordou com
um barulho de tiro. Saiu apressada da cama e encontrou, Tia Matilda, Ceci e
Sabú ainda com suas roupas de dormir na cozinha. Sabú disse:
- O que
aconteceu madrinha?
Matilda com um
olhar de preocupação respondeu:
- Albert foi
matar o Leão Baio que comeu um dos terneirinhos essa noite.
Todos se
olharam assustados, pois a ramada onde os bezerros passavam a noite ficava a
alguns metros da casa; um animal como aquele poderia atacar qualquer um.
Eva ainda tinha
calafrios ao relembrar seu encontro com o Leão Baio, naquela noite fria que ela
passou perdida no Chapadão das Demoras; ela tinha muito medo de reencontrar com
um animal daqueles. Abraçou a tia e nisso tio Albert abriu a porta.
Ele contou que
acertou o bicho. Seguiu os rastros de sangue que o animal deixou ao arrastar o
bezerro para o meio da mata e enquanto o bicho comia ele atirou. Disse que
estava de longe e o tiro não foi mortal mas que achava muito difícil que o
bicho sobrevivesse.
- Daquele, eles
estavam livres!
Nos últimos
dias eram muitos os relatos de ataques do bicho pela região, contavam até que
por pouco ele não comeu um bebê que estava deitado em um cobertor, enquanto os
pais plantavam na roça. Certamente matar aquele bicho tinha sido um grande
feito. Tio Albert ficou orgulhoso, apenas lamentava não ter encontrado o bicho
para com seu couro fazer um tapete para colocar na sala, como um troféu.
Durante aquela
manhã, como em outra qualquer eles ajudaram em todos os serviços, que iniciavam
logo cedo com a ordenha das vacas. Depois do almoço como de costume, estudaram
e depois foram brincar.
Sabú gostava de
se meter no meio da mata, colher frutas, ouvir os pássaros e às vezes enquanto
as meninas brincavam mais perto da casa ele se distanciava, distraído, pelo mato.
Nesse dia Sabú veio com os olhos arregalados e em um tom de segredo contou que
estava caminhando pelo meio da mata quando deu de cara com a ossada do bezerro,
que estava quase toda devorada, Depois encontrou um outro rastro de sangue que
só poderia ser o do Leão Baio, atingido pelo tiro. Então foi chamar as meninas
para que juntos, eles seguissem o rastro para encontrar o bicho morto e trazer
o couro para Albert fazer o sonhado tapete. As meninas toparam na hora.
Eva pegou seu
chapéu e se preparou para mais um desafio.
Andar pelo meio
da mata com Sabú e Ceci era sempre muito prazeroso, eles falavam em Tupi nessas
ocasiões e tudo tinha um significado. Assim que encontraram o rastro de sangue
começaram a segui-lo. Cada vez mais o rastro os levava para o interior da mata.
Algum tempo depois chegaram a um local cheio de rochas, que Ceci disse que a
algum tempo era utilizado por seu povo como abrigo.
De longe eles
viram o animal caído e enquanto iam se aproximando viram que, ainda mamando em
seu corpo já quase sem vida, existia um filhotinho. Os três ficaram surpresos e
se aproximaram. Na verdade o Leão Baio era uma leoa com seu filhinho de mais ou
menos uns dois meses. Ao ver que eles se aproximavam, a leoa tentou levantar,
mas já não tinha forças, apenas gemia e ofegava. O filhotinho mamava, sem
entender o que estava acontecendo. Naquele momento Eva, Ceci e Sabú, passaram a
ver aquele animal de uma outra maneira. Ela não era um monstro que matava a
sangue frio apenas por prazer, mas para se alimentar e alimentar seu filhote.
Ceci se
ajoelhou ao lado dela e Eva e Sabú fizeram o mesmo. Os olhos da leoa pareciam
pedir ajuda. O sofrimento era visível. O tiro pegou em sua barriga e ela perdeu
muito sangue, além da bala ter feito um buraco enorme, que já começava a atrair
moscas. Eles ficaram ali, ao lado dela por alguns minutos, quando finalmente
ela parou de respirar e sofrer. Os três não conseguiram segurar o choro. Tinha
sido muito triste ver aquele animal lindo, enorme sofrendo daquela maneira.
Sabú disse:
- Eu não quero
ver o couro dela na nossa sala.
As duas
concordaram. Algum tempo depois eles lembraram do filhote e tentam pegá-lo. A
princípio ele resistiu, era arisco, mas ao final como todo filhote ele queria
brincar - O que eles fariam com aquele bicho?
Eva estava
decidida, eles o criariam.
Levaram o
animal com eles e em um local mais próximo de casa, resolveram acomodá-lo. Para
que ele não fugisse decidiram que a princípio o amarrariam.
Todos os dias
eles levavam comida para Katze, o nome dado a ele por Eva. Levavam leite e ele
bebia litros. Quando estavam lá o soltavam e ele corria atrás deles, era
amável, gostava de roçar nas pernas das crianças, de afagos, de simular
ataques, mas toda vez que eles saíam o animal ficava triste e parecia chorar.
Eva pensava no
dia em que levaria ele para sua casa. Ele era inofensivo, não fazia mal a
ninguém e ela faria o maior sucesso na vila, tendo um Leão Baio como animal de
estimação. Eles criavam Katze em segredo, nem tia Matilda, nem tio Albert
desconfiavam de nada.
Certo dia foram
encontrar Katze, mas a corda com a qual eles amarravam o bicho estava roída.
Ele tinha crescido nos últimos meses, estava mais forte e com dentes afiados.
Mesmo não estando amarrado, quando viu os amigos ele veio até eles. Brincaram e
deram comida, mas dessa vez Katze não tinha dado muita atenção ao leite.
Assim se passou
o tempo. Eles indo visitar Katze e ele aparecendo. Só que um dia, o contrário
também aconteceu. Era ainda de manhã quando Katze apareceu no terreiro da casa,
quase matando Tia Matilda do coração. Ela estava alimentando as galinhas quando
o animal apareceu, andando tranquilamente. Sabú que estava por perto tentou
acalmá-la, mas ela sem querer saber de conversa pegou o indiozinho no colo e
saiu correndo cozinha adentro em busca da espingarda. Ceci e Eva chegaram a
tempo de evitar que a tia atirasse nele.
Eles começaram
a explicar que conheciam Katze, que tinham o criado e que ele jamais faria mal
a alguém. Tio Albert entrou nervoso por uma das janelas da casa, branco como
uma folha de papel, dizendo que tinha um Leão Baio deitado na frente da porta.
Eva não conseguiu segurar o riso, mas foi repreendida por tia Matilda.
Matilda e
Albert resistiram muito mas por fim, resolveram que iam tentar ver se o animal
era mesmo tão dócil quanto as crianças falavam e os cinco saíram. Primeiro
Eva... chamando o bicho como se ele fosse um gatinho “Katze, Katze, Katze,
Katze, Katze” e ele atendeu ao chamado, vindo até a menina e lambendo sua mão.
Albert ficou boquiaberto. Enrolava os bigodes e dizia que aquilo não era
possível. Depois foram Ceci e Sabú, que rolaram pelo terreiro com o bicho.
Matilda meio a contragosto e praticamente obrigada por Sabú passou a mão no
animal. Albert apenas observou e soube naquele momento que aquilo ainda lhe
traria problemas.
Albert mandou
que as crianças levassem o bicho para o meio do mato. Elas o levaram, mas no
dia seguinte ele aparece novamente e matou uma das galinhas de Tia Matilda. As
crianças disseram que ele foi apenas brincar, mas Tio Albert disse que não
tinha como ele fugir de suas origens. Ele era um animal selvagem e o instinto
dele o faria matar, não por maldade, mas para conseguir alimento.
No dia seguinte
as crianças foram acordadas por uma discussão entre os tios, Levantaram
assustadas pois aquilo não era comum. Ao chegarem à cozinha encontraram tio
Albert com a espingarda em punho e tia Matilda tentando impedir que ele saísse.
Eva disse:
- O que houve?
O que houve?”
Tio Albert
respondeu:
- O que houve? O seu gatinho matou um bezerro e
agora eu vou dar cabo nele.
Sabú e Ceci se jogaram aos pés de Albert
implorando para ele não fizesse nada com Katze. Matilda disse que precisavam
conversar, antes de qualquer coisa. Foi nesse momento que ouviram muitos
barulhos vindos da ramada. Correram para ver e Katze estava atacando uma vaca,
que por ser bem grande tentava se defender. Tio Albert deu um tiro para cima
para espantar o bicho, fazendo ele ficar longe da vaca para facilitar a mira.
Quando tinha o bicho na mira de sua arma, Eva se colocou na frente do animal e
o abraçou, assim impedindo que o tio o matasse. Ceci e Sabú também foram para
perto de Katze e pediram para que Albert não atirasse. Matilda abaixou a arma
de Albert que enrolou os bigodes e falou:
- Tirem esse
bicho daqui, senão vou matá-lo.
Os três pegaram
Katze e o levaram para o meio do mato, o mais longe possível. Andaram por horas
e disseram para o bicho ficar lá, mas não adiantou, eles o deixavam e ele os
seguia. Eva foi conversar com o bicho, chorando, pedindo para que ele não os
seguisse, pois seria morto por Tio Albert. Todos choravam e tentavam explicar a
Katze o que estava acontecendo. Se despediram, mas não adiantava, Katze os
seguia. Uma, duas, três vezes, até que Ceci pegou uma pedra e jogou no animal.
Eva ficou brava com a amiga mas Ceci disse:
- É o único
jeito.
Andaram mais um
pouco e quando ele insistiu novamente em segui-los, Ceci jogou outra pedra que
o acertou bem na cabeça, Ceci chorava e gritava:
- Vá embora, a
gente não te quer mais.
Sabú e Eva
entre lágrimas também gritavam para ele ir embora e jogavam pedras, para o
assustá-lo. Deu para perceber no seu olhar que ele não estava entendendo nada,
mas o fato é que não voltou mais atrás deles.
Quando chegaram
em casa estavam muito tristes, mas entendendo os motivos de Albert, não ficaram
bravos com o tio. Os tios conversaram explicando que era o instinto dele, mas
apesar de entenderem estavam muito tristes por ter perdido o amigo.
Apesar de o
tempo estar passando eles sempre olhavam para a mata e se pegavam pensando: “O
que será que Katze está fazendo agora”, “Será que ele está bem?”...
As crianças
andavam tristes e Albert resolveu fazer algo para alegrá-las. Convidou-as para
irem com ele até a Lomba Alta. Ele levaria uma carga de mandioca e traria
farinha de milho. Elas adoraram a ideia e subiram no carroção faceiras. Iam
seguindo a viagem quando viram um homem caído, muito machucado, na beira da
estrada. Tio Albert parou a carroça e pediu para as crianças aguardarem,
enquanto ele ia ver o que tinha acontecido.
O homem havia
sido espancado e mal conseguia falar. Ele disse que o assaltaram, levaram sua
carga de sal, seu dinheiro e além disso bateram para matá-lo, só pararam quando
ouviram o barulho do carroção de Albert se aproximando. O homem começou a
tossir sangue e Albert percebeu que precisava fazer alguma coisa. Desatrelou um
dos cavalos da carroça e avisou que teria que levar o homem até o Barracão.
Pediu para que as crianças se escondessem no mato e esperassem ele voltar.
Antes de sair olhou para Eva e disse:
- Minha filha,
sem nenhum ato heroico, por favor.
Tio Albert
colocou o homem desacordado no cavalo, montou e o mais rápido que o cavalo
aguentava com dois em cima, fez o bicho andar.
Eva, Ceci e
Sabú se esconderam no mato. Alguns minutos depois, ouviram vozes do outro lado
da estrada, também saindo do mato.
- Vamos Frederico, eles já se foram, apure!
E então eles
tiraram uma carroça cheia de sal do meio do mato, mas antes de seguir seu
destino Frederico falou:
- Meu irmão,
hoje é mesmo nosso dia de sorte, olhe bem, uma carga prontinha de mandioca,
vamos levar também.
Ao ouvir isso
Eva se alvoroçou, mas antes de partir em direção dos bandidos, Ceci a segurou
pelo braço e disse:
- Sem atos
heróicos, por favor.
Eva se conteve,
mas o barulho no mato chamou a atenção dos bandidos. E eles falaram:
- Acho que tem
alguém aí, alguém que quer morrer!
Os homens foram
em direção do esconderijo de Sabú. Percebendo isso, Ceci levantou e acertou uma
pedrada na cabeça de um dos bandidos, que caiu. O outro gritou:
- Ahh sua
bugrinha infeliz, agora eu vou te furar de bala.
Ele atirou
contra Ceci que saiu correndo em direção ao mato, seguida por Eva e Sabú. Nesse
meio tempo o bandido atingido pela pedrada também se levantou e partiu atrás
das crianças.
Eles correram,
com os bandidos em seu encalço. Correram o mais rápido que puderam, mas os bandidos
também eram rápidos. Eva gritou para que se separem e Ceci mudou de direção,
levando consigo o bandido que a perseguia, enquanto Eva e Sabú acabam
encurralados. Eles estavam cercados por um paredão de pedras e uma folhagem
fechada que impedia que eles corressem, então se viraram para o bandido que
disse, arrumando a munição em sua arma:
- Façam seus
últimos pedidos, pestinhas, porque agora vocês vão morrer.
O homem apontou
a arma para as crianças. Eva não conseguia pensar em nada, abraçou Sabú e quando
ele mirou nos dois, Katze pulou de cima de uma árvore no bandido. Com suas
garras, deu uma patada no pescoço do bandido que começou a sangrar. Katze olhou
para Eva e Sabú, enquanto eles surpresos pensavam que não poderiam ter
encontrado o grande amigo em melhor hora. Ouviram um grito de Ceci e Katze saiu
em disparada pelo meio da mata. Pouco tempo depois se ouviu disparos e gritos
desesperados.
Eva estava
tentando estancar o sangue do bandido quando Albert começou a gritar seu nome.
Sabú que tinha saído em busca da irmã encontrou também Albert e os levou até
Eva. O homem estava esvaindo em sangue e Albert trocou de lugar com a sobrinha.
Eva perguntou a Ceci por Katze e ela contou que o homem tentou atirar contra
ele, mas errou os disparos saindo correndo pela mata, desesperado com Katze o
perseguindo. Tio Albert falou que não tinha jeito, o homem havia morrido e ele
o carregou até a carroça. Na estrada, já havia parado outro carroceiro, que
havia ouvido os tiros e resolveu parar para ajudar. Enquanto Albert contava a
história para o carroceiro, Katze apareceu no meio da estrada. O carroceiro
rapidamente pegou a sua espingarda, mas Albert com a mão mandou que ele a
guardasse.
Eva, Ceci e
Sabú, foram até o amigo que estava sujo de sangue. Katze os lambeu, e eles
brincaram com ele. O carroceiro não acreditava no que estava vendo.
As crianças
abraçaram Katze e ele dando uma última lambida em cada amigo, se enfiou
novamente na mata.
As crianças não
sabiam, se um dia voltariam a vê-lo, mas certamente todos tinham uma grande
dívida de gratidão com ele.
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