Personalidades: Altair Wagner


20 de setembro de 1930

08 de outubro de 2021


Um dos homens que mais contribuiu para que a história de Alfredo Wagner fosse contada e preservada foi o senhor Altair Wagner. Vamos através da biografia escrita por seu sobrinho Juliano Wagner, conhecer um pouco mais sobre esse homem inspirador!

Ao se passar pela vila de Lomba Alta, chamam a atenção as duas edificações que compõem o Museu de Arqueologia, ladeadas por belo jardim, e que têm ao fundo um bosque composto por árvores nativas frutíferas. Mais adiante se avista, sobranceira no cume de alterosa colina, a Capela de Santo Antônio. Da capela, ao se volver para o poente, exibe-se fagueiro o legendário Morro do Trombudo, cujo nome e referências remontam, na documentação oficial e na tradição oral, às mais priscas eras. 

A Igreja e o Museu se tornaram uma espécie de ícone de Lomba Alta, e a peculiaridade de sua arquitetura os fez intrinsecamente associados à vila, assim como o é o Trombudo. As duas obras foram concebidas e idealizadas por um dos mais ilustres filhos de Lomba Alta: o Dr. Altair Wagner. Já nos 1.306 metros de altitude do cimo do Morro do Trombudo ele protagonizou uma memorável descoberta histórica. 

Altair Wagner foi o primeiro cidadão nascido no território que hoje compreende o município de Alfredo Wagner a obter formação universitária – sua graduação em engenharia civil ocorreu antes mesmo da criação da Universidade Federal de Santa Catarina. Foi também prefeito de Chapecó, presidente da CELESC, administrador da CASAN na região oeste catarinense – englobando 50 municípios -, membro do Instituto Histórico e Geográfico de Santa Catarina. Não obstante, foi escritor, historiador e arqueólogo amador, e um estudioso aficionado de astronomia, geologia, numismática, filatelia e genealogia. 

São Miguel é tempo de chuva – assim reza o conhecimento empírico de nossa região. De fato, geralmente a data comemorativa ao Arcanjo Miguel, 29 de setembro, bem como os dias que dela se acercam, tendem a ser de chuva abundante. O dia 24 de setembro de 1930, uma quarta-feira, ratificou categoricamente essa crença. Ao amanhecer, o acúmulo de caliginosas nuvens sobre a Lomba Alta, quase que a enegrecer o céu, anunciava um temporal iminente, que foi antecedido por uma estrondosa trovoada. Santília Schmidt Wagner, então com 26 anos, estava prestes a dar à luz seu quarto rebento. Como de praxe, seus filhos pequenos tiveram de sair de casa para que a “cegonha” pudesse chegar. Iracy, com cinco anos incompletos, e Walter, com três anos, foram levados pela babá Tuta (filha do Mané Pinhal), que contava uns doze, treze anos, para a casa de seus avós Alfredo Henrique Wagner e Júlia Freiberger Wagner, que ficava a uns 50 metros dali. A parteira, uma alemã rechonchuda conhecida como Grossmutter – avó em alemão – acabara de chegar, oriunda de Barracão. Ela chegou a cavalo, de vestido comprido e rodado, montada num selim. Além da parteira, a vovó Júlia ali se encontrava para auxiliar a parturiente. 

O bramido da tempestade se justificou com o que ela trouxe: uma intensa precipitação de granizo. Enquanto o pequeno Altair vinha ao mundo, a chuva torrencial de pedras deteriorou o telhado de tabuinhas da pequena casa. Como que por um milagre, o único cômodo que não foi afetado foi o aposento onde ocorria o parto. Pouco antes do meio-dia foi noticiado às crianças que nascera um irmãozinho, e que elas poderiam voltar para casa. Ao chegarem, deparam-se com vovó Júlia saindo pela porta. Esta, ao vê-los, se abaixou, pegou uma pelota de gelo, pôs na palma da mão e lhes mostrou: “Vejam que grande esta pedra que caiu! É do tamanho de um ovo!”. 

Olíbio Leandro Wagner (Lili), o pai de Altair, trabalhava nessa época com o transporte de mercadorias entre a Serra e o Litoral. Ele tinha uma pequena frota de carroças e uma equipe de carroceiros. Com o advento da era dos caminhões, a profissão de carreteiro – como eram chamados – tornou-se obsoleta. Em 1933, Lili encerrou essa atividade e comprou uma venda, vindo a residir na área mais central da vila, onde hoje se encontra o Comércio de Bebidas Netto. Foi ali que Altair passou a maior parte de sua infância e onde perpetrou suas travessuras. Muitos dos acontecimentos de sua primeira infância se refletiriam em sua personalidade na fase adulta. 

Ele e seu irmão Walter tinham de, todos os dias e várias vezes, buscar água na fonte, que ficava em uma grota, um pouco distante da casa. Os dois meninos enchiam uma lata de água, punham sua alça numa vara, a fim de que pudessem dividir o peso, e subiam rumo à casa. No caminho, começavam a discutir, achando que a lata estava pendendo mais para o ombro de um do que do outro, e acabavam brigando. A água era toda derramada, e tinham de retornar à fonte para reencher o balde. Lili, que era avesso a repressões físicas nos filhos, certa vez, ao observar a cena, teve de interferir e surrar os meninos. 

Walter era de índole sensível, amorosa, apiedando-se de tudo; Altair era mais traquinas, e, munido de funda e armadilhas, vivia caçando os animais. Certa vez, Walter encontrou uma urupuca que Altair deixara armada e, dentro dela, estava preso um passarinho, assustado, inquieto, amedrontado. Walter compadeceu-se da pobre ave e a soltou. Altair flagrou a atitude do irmão e, encolerizado, atirou-lhe uma pelota com o estilingue, acertando-lhe frontalmente a cabeça. Ao perceber o mal que fizera, fugiu para o mato, mas logo ouviu a voz grave de seu pai o chamando: “Altair! Altair!”. Sabia que, caso se escapasse do seuLili, seria punido com ainda mais severidade. A sensação de ter podido matar o irmão por motivo torpe acompanhada da surra do pai levou-o a forte reflexão: a partir daquele dia, ao invés de maltratar e dizimar os animais, tornou-se um protetor deles. 

Outro ensinamento que Altair recebeu de seu pai ocorreu na adolescência. Ele estava vindo do Poço Certo para casa e, ao passar ao lado da lagoa do senhor Pedro Althoff, resolveu improvisar um caniço, anzol e pescar. Pegou um peixe enorme e, faceiro, levou-o para casa. Ao chegar, seu pai lhe fez duas perguntas e uma ordem: “Onde você pegou esse peixe? Você pediu para o Pedrinho para pescar na lagoa dele? Então vá devolver!”. Encabulado, Altair foi devolver o peixe para o seu Pedrinho, mas este, bonachão, sorridente, não aceitou de maneira alguma: “Pode pescar à vontade, Altair! Tem bastante peixe na lagoa. Não me faz falta.”. Lá ia Altair de volta à Lomba Alta com o peixe, desta vez tendo aprendido uma forte lição de honestidade, ética, respeito à propriedade alheia, que ele seguiria por toda a sua vida. 

Em sua infância e mocidade, o melhor amigo de Altair era Osny Behling. Os dois juntos eram tenebrosos em matéria de fazer arte. Lili estocava fumo de corda no porão da venda, em um buraco cuja umidade não permitia que o material secasse. Altair e Osny foram flagrados um dia com carrinho de mão cheio de terra tapando o buraco e o fumo que ali estava. Noutra feita, eles quebraram as garrafas de gasosa armazenadas no porão para retirar delas a bolita – tampa parecida com bolinhas de gude – para com elas brincar. Essas duas peripécias ocorreram em breve intervalo de tempo e levaram Lili à tomada de uma decisão: Altair deveria ir para a escola. Era o início do ano de 1936, e o garoto tinha apenas cinco anos. 

Iracy, a primogênita, foi incumbida de levar o irmão à escola e de ficar ao seu lado na sala de aula. No primeiro dia, diante da recusa do pequeno Altair em estudar, seu pai teve de interferir: o menino foi apanhando de casa até a escola. Nos dois primeiros dias, manteve-se introspectivo, ficando sempre próximo da irmã. Mas o professor Assis – Francisco de Assis Basilício Ramos, um extraordinário educador, instigou em Altair o interesse pela instrução e o cativou. A partir do terceiro dia, levantava cedo e se arrumava para ir à escola, e já estava interagindo bem com os colegas e com o professor. O castigo que recebeu em seu primeiro dia de aula foi tão eficiente que Altair, em seus 91 anos de vida, nunca mais parou de estudar. Em toda a sua vida foi um ávido leitor e pesquisador, aprofundando-se em variegadas áreas do conhecimento. 

Na escola isolada de Lomba Alta ele foi um aluno de destaque, sempre estudioso e aplicado, sempre interessado, querendo aprender mais. Ao concluir o quarto ano primário, foi estudar no Colégio Alexandre de Gusmão (inaugurado em 1942), em Bom Retiro, onde ficou até 1944. Frequentaram a escola nessa época, além de Altair, seu irmão Walter e Alcebíades Frederico Andersen – Pide, filho de um primo de sua mãe. Os três se tornaram inseparáveis, permanecendo, durante a semana, em Bom Retiro e, nos fins de semana, em Lomba Alta, na casa de Lili e Santinha Wagner. 

Diante do talento que Altair vinha apresentando para os estudos, o professor Assis, que continuava acompanhando o seu progresso, incentivou Lili Wagner a investir na educação do filho. A situação financeira de Lili, a esta altura, já estava bem mais favorável – ele era proprietário de serrarias e fazendas, criador de gado, negociante. Foi dada a Altair a oportunidade de estudar em escola particular – o Colégio Diocesano, de Lages –, entretanto, Altair precisaria ser aprovado no concorrido teste admissional. Para isso, preparou-se durante meses, tendo tido aulas particulares com a professora Maria de Lourdes Rampinelli, que morava com os Wagner. 

Quando chegou o resultado da prova (teste admissional) Altair surpreendeu a todos, galgando o primeiro lugar entre todos os aspirantes. Começou a estudar no Colégio Diocesano, como aluno interno, no ano de 1945. Meses depois, veio em casa visitar os pais, ocasião em que, acompanhando a prima Esterlita Franz Althoff e seu marido Oscar Althoff, foi ao casamento de sua outra prima, Edith Franz, com Olímpio Steffen, em Barracão. Meses depois voltou, desta vez para assistir ao casamento de sua irmã Iracy. 

A cada visita de Altair à casa dos pais, ele trazia novidades e, dessa forma, influenciava a família e a comunidade. Dava orientações sobre a alimentação: diminuir o consumo de gordura e aumentar o de vegetais, alimentar-se com frugalidade, praticar exercícios físicos, tomar sol. Conscientizava os irmãos sobre a importância de preservar a fauna e flora. Instigava-os a, assim como ele, estudar. Nesse tempo ele dava início às suas primeiras coleções: moedas e cédulas antigas, artefatos indígenas, pedras... 

Altair mostrou-se um exímio jogador de futebol, e quando vinha passar as férias em sua terra, causava sensação como futebolista. Certa vez, acompanhou o time da Lomba Alta em um amistoso com o União Futebol Clube, de Barracão. Ambos os times eram muitos bons, e a disputa prometia ser acirrada. O jogo foi no campo do Sr. Evaldo Franz (Valdinho), no Estreito, e uma numerosa e animada torcida se espremia para o assistir à partida. Estava nos últimos segundos do 2º tempo e o jogo estava empatado. Foi então que um parceiro passou a bola para Altair que, contrariando o estilo de jogar futebol na época, em que prevaleciam os inconsequentes “chutões”, Altair parou a bola, dominou-a e, calmamente, lançou-a ao gol, num chute certeiro, sacramentando a vitória da Lomba Alta sobre o Barracão. A plateia, maciçamente formada por moradores do Barracão e que, por conseguinte, lamentava a derrota do glorioso União, ficou estupefata. Após a partida, Wagner manteve-se alerta, pois havia muitos torcedores do União inconformados com o inesperado resultado e não seria incomum surgir uma briga. Entretanto, o clima foi se acalmando e, por fim, Altair foi abordado por Vadinho Schweitzer, fanático torcedor do time da casa que, para surpresa do jogador, ao invés de expressar repúdio, teceu, extasiado, elogios à sua habilidade e ao seu estilo de jogo. 

Tendo permanecido em Lages até 1950, Altair obteve permanentemente boas notas, sobretudo em latim, francês, português, matemática. Tendo sido criado em uma família extremamente religiosa, que tinha por hábito rezar o terço todas as noites e que acolhia os sacerdotes em sua casa para as refeições, tornou-se coroinha da Catedral Diocesana de Lages. Há poucos anos, Wagner discorreu sobre os tempos em que foi acólito. Declarou que era uma oportunidade de se aprofundar na religião e alimentar sua espiritualidade, e concluiu confidenciando que, ademais, havia dois fatos muito motivadores: o lanche que era servido na sacristia após a missa, com doces, biscoitos, bolachas, e o fato de encontrar as meninas que estudavam no Colégio Santa Rosa de Lima. Naquela época, o Colégio Diocesano só abrigava rapazes e, o Santa Rosa, só moças. 

Concluindo os estudos em Lages, Altair teve de se mudar para um grande centro a fim de poder dar continuidade à sua vida escolar e, doravante, acadêmica. Como não existia universidade em Santa Catarina naquela época, foi para Curitiba, onde, em 1956, se formaria em engenharia civil. Foi em Curitiba que conheceu Luci Pudell, com quem casou e teve três filhos: Liliane, Antônio Paulo e Luciano. 

Tendo exercido uma fulgurante vida profissional e pública, Altair se aposentou em 1992. A inquietude que manifestou quando menino arteiro não lhe permitia encerrar, aos 62 anos, suas atividades. Pelo contrário, a aposentadoria fez com que desse início a um projeto que se constituía em um grande ideal: uma ampla pesquisa sobre a presença indígena no município de Alfredo Wagner e seus arredores, com visitação e catalogação dos sítios arqueológicos, recolhimento de artefatos, coleta de informações com pessoas que conviveram com os índios. Tudo isso culminaria na implantação de um museu em sua terra natal, Lomba Alta. 

Eu contava onze anos na época e, tal como meu tio, era um entusiasta por arqueologia, história, ecologia, geologia. Tive a enorme felicidade de o ter acompanhado nesses dez anos de pesquisa, marcados por inesquecíveis expedições. Homem metódico e organizado, ele permanecia uma semana em cada mês em Alfredo Wagner, hospedando-se na casa de sua irmã Edite Wagner Dorigon e de seu cunhado Mateus Dorigon, moradores de Lomba Alta. 

Em 20/10/2002, data em que rememorava o cinquentenário da morte de seu avô Alfredo Henrique Wagner, concretizava-se finalmente um grande sonho de Altair: inaugurava-se o Museu de Arqueologia de Lomba Alta, em uma casa que é réplica da residência de Alfredo Henrique, e cuja construção foi financiada, com recursos próprios, pelo Dr. Altair; lançava-se também, na véspera, o livro “Alfredo Wagner: terra, água, índios”, no qual Altair registrou o resultado de seus dez anos de pesquisas empreendidas no município. 

 O então prefeito Sérgio Biasi Silvestri aderiu apaixonadamente à ideia da criação do Museu e muito colaborou para a viabilização e realização do projeto. Não só o prefeito, mas a população alfredense em geral cooperou deveras com os ideais do Dr. Altair, permitindo-lhe franco acesso às suas propriedades, doando-lhe materiais, prestando-lhe informações sobre os povos primitivos. 

Era um homem que até poderia ter motivos para se orgulhar, mas cujo caráter imaculado não lhe permitia externar qualquer sentimento que se assemelhasse à soberba. Era genuinamente modesto, humilde e lhano. Em 2002, quando foi criada a Fundação Alfredo Henrique Wagner – entidade mantenedora do Museu –, os sócios sugeriram que ela fosse intitulada “Fundação Altair Wagner”, o que ele rechaçou com veemência. Não pleiteava para si preitos e homenagens; repudiava vanglória, jactância, vaidade. Para ele, ostentação era algo completamente desnecessário. O que lhe causava interesse era a cultura, a ciência, os estudos, e a simplicidade e franqueza de seus amigos alfredenses.

 Injustamente alguns maledicentes o consideravam avarento, fama essa que surgiu pelo fato de ele, embora bem sucedido financeiramente, se vestir com comedimento, ter hábitos espartanos e andar em veículo popular. Os dez anos de intensa convivência com meu tio me permitem tecer uma conclusão sobre esse tema: de fato, se se sugerisse ao tio Altair comprar uma camisa nova, um sapato de marca, ele recusaria e certamente acharia caro, mas se se falasse em fazer uma enorme pintura retratando um dos milagres de Santo Antônio, de quem ele era devoto, no presbitério da igreja de Lomba Alta, ele prontamente se propunha a patrocinar, despendendo um valor que corresponderia a 30, 40 camisas. Houve ocasiões em que a prefeitura deixou de destinar verbas para a manutenção do Museu, e, para evitar que ele fechasse, o próprio Dr. Altair pagava os salários dos funcionários e custeava despesas de manutenção. E ele o fazia sem alarde, sem se vangloriar, sem requerer reconhecimento. Fazia-o tacitamente, sentindo-se bem por poder, com efeito, praticar a cidadania e dar sua contribuição à sua terra, doando-se a ela com dileção e amor. 

Depois de uma existência de 91 anos de idade, Altair Wagner faleceu no dia 08 de outubro último. Devido à avançada idade e às limitações impostas pela pandemia do coronavírus, Wagner, que morava em Florianópolis, não pôde mais vir à sua amada terra natal nos últimos anos. Visitei-o algumas vezes nesse período e senti nele certa melancolia, nostalgia, sobremaneira quando eu relembrava nossas expedições, nas quais subíamos serras, escavávamos antigas ocas, entrávamos em cavernas, nos alimentávamos à margem de riachos, no meio da floresta. Certamente sentia muita falta de, ao entardecer, contemplar o “panorama espetacular” – segundo suas palavras dele – que se tem desde a Lomba Alta. É no cemitério de Lomba Alta, a poucos metros do local em que nasceu, que jazem serenamente seus restos mortais.

Texto escrito por Juliano Wagner. 

Biografia presente no livro "Histórias da Nossa gente"
das autoras: Carol Pereira e Manuella Mariani 

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