Fazia mais de
uma semana que não parava de chover. Chovendo, todos ficavam a maioria do tempo
dentro de casa. Tia Matilda estava ensinando Eva e Ceci a bordar, mas Eva não
levava muito jeito com as agulhas. Tio Albert e Sabú estavam construindo uma
carrocinha de madeira, para o menino brincar. Eva resolveu ir para o seu
quarto, pegou seu livro em branco com a capa marrom e começou a escrever.
“Hoje faz um ano que cheguei ao Brasil.
Eu saí de casa em uma manhã chuvosa, chuvosa como essa que estou
revivendo hoje. Meu pai havia acabado de ser enterrado. No enterro estavam
apenas alguns amigos mais íntimos, Senhor Leopold, que era nosso vizinho e o
comandante Hans Voss, que era o responsável por me trazer em segurança até o
Brasil. Eu não consegui chorar.
Eu mal conhecia o Comandante Hans, mas meu pai me disse que eram
amigos de longa data, o comandante tinha lhe acompanhado em várias viagens ao
redor do mundo e com ele eu estaria em boas mãos. Meu pai tinha enviado uma
carta a meus tios no Brasil, dizendo que estava doente e para irem se
preparando pois se acontecesse o pior eu iria morar com eles, na carta meu pai
também falava sobre finanças, que não me deixaria desamparada, estava abrindo
uma poupança em meu nome com uma quantia significativa que eu só poderia sacar
quando fosse maior de idade e o restante mandaria junto comigo, para minhas
eventuais despesas. Ele dizia na carta que eu estaria bem amparada, embora
desde que eu cheguei aqui nunca tenham mexido em meu dinheiro, meu tio colocou
no banco e disse que por enquanto não precisamos dele.
Acompanhei o Comandante até a cidade de Hamburgo, onde pegamos um
Navio chamado Cap. Norte até o Brasil. Ao sair de Heidelberg olhei para a
cidade com água nos olhos, eu não sei se um dia voltarei a colocar meus pés
novamente naquele chão.
O navio fez várias paradas: em Vigo na Espanha, Lisboa em Portugal,
Pernambuco, Bahia e Rio de Janeiro, onde eu desci, mas até chegar lá foram sete
semanas no mar, passando por todo tipo de coisas. Eu fiquei acomodada em um
camarote ao lado do camarote do capitão. Embarcamos nesse veleiro por ele ser o
primeiro a sair após a morte de meu pai, ele não era dos melhores, mas
comandante Hans tinha pressa de vir, muitos outros imigrantes fizeram a viagem
comigo.
Tive muita sorte, meu barco não demorou tanto, tinha gente que
demorava de três a quatro meses para cruzar o grande oceano. A mortalidade à bordo
era enorme, Tia Matilda e Tio Alberto contam que na viagem que trouxe eles para
o Brasil cerca de 10% dos imigrantes morreram. Era tudo muito triste! Eles eram
jogados ao mar sem nem ao menos a benção de um padre. As razões para as mortes
eram inúmeras mas entre elas estavam principalmente o alto número de
passageiros e também as condições de higiene, que eram péssimas, as pessoas não
tinham onde fazer suas necessidades, o fedor era imenso, bem como a propagação
de algumas doenças. Eu não viajei em condições assim, mas bem sei que os
imigrantes não tinham todas as regalias que eu tive.
A princípio fiquei trancada no meu quarto, com as poucas coisas que
trouxe comigo, algumas roupas, o chapéu de papai e seus inúmeros livros. Eu não
conseguia entender como minha vida tinha mudado tanto em apenas alguns meses.
Um dia eu estava feliz, fazendo experiências nas aulas de química na escola, no
outro eu estava em alto mar, indo para uma terra onde muitos livros diziam que
ainda existiam homens selvagens e animais que comiam pessoas.
Meu enjoo demorou uns três dias para passar, mas teve gente que
adoeceu por não conseguir comer de tão nauseada que estava.
Como de costume o tédio foi me vencendo
e resolvi andar pelo navio. O comandante Hans Voss era digno, mas não era homem
de muitas palavras. Resolvi descer para o convés que estava atulhado de gente.
Haviam famílias inteiras a bordo, crianças recém-nascidas, velhinhos já à beira
da morte. Fiquei muito impressionada quando vi o corpo de um homem que morreu
sendo jogado ao mar, ele tinha quatro filhos pequenos e sua mulher chorava
enquanto dizia sem parar “como vou começar a vida em um lugar estranho sem meu
Jacob?”. Achei aquilo muito triste.
O navio era enorme e quase não
balançava, exceto uma vez onde a noite praticamente virou dia por causa dos
muitos relâmpagos e não demorou muito para o mar enfurecer e tentar engolir
nossa embarcação. O Comandante mandou eu ir para meu camarote, mas as ondas
batiam com tanta violência na janela que fiquei com medo dela quebrar, desci
para junto dos outros imigrantes. Alguns rezavam, as crianças berravam em um
desespero sem fim, a tripulação estava em polvorosa. Eu não sabia bem o que
fazer, me sentei ao lado de uma senhora e ela vendo minha aflição me deu a mão.
Foi um gesto simples, mas me confortou, fiquei ali, sentada naquele beliche ao
lado dela, ambas se equilibrando, esperando a tempestade passar e, ela passou.
Assim que o navio parou de pinotear debaixo de meus pés eu corri novamente para
o meu camarote.
No dia seguinte os boatos eram muitos, falaram que um dos marinheiros
caiu no mar, tragado por uma onda e que a violência delas tinha quebrado um dos
mastros.
Antes do almoço o Comandante veio falar comigo e disse que não gostou
de eu ter descido para junto dos outros imigrantes, disse que lá era perigoso e
que eu poderia ficar doente. Fiquei mais de uma semana sem descer, mas eu
enlouqueceria se ficasse presa naquele quarto, então acabei descendo novamente.
Parecia que a comida e a água tinham começado a ser racionadas, porque
durante a tempestade alguns mantimentos se molharam e a água salgada se
misturou à água potável. Estávamos enfrentando problemas! A partir desse dia
passei a dividir minhas refeições com aquela senhora que me deu a mão durante a
tempestade e ela por sua vez, dividia sua porção com um netinho, que parecia
estar fraco, pois aparentemente não conseguia se alimentar, vomitava o tempo
inteiro. A nossa comida era diferente, era comida, diferente daquilo que era
servido para o restante das pessoas.
Comecei a perceber que quando chovia todos armazenavam o máximo de
água que podiam, pois em muitos dias passavam sede. A comida servida a eles era
horrível: água com café –aquilo mais parecia uma água suja – batatas
apodrecidas, um pouco de carne salgada, pão velho... era servido no almoço, uma
espécie de sopa com minúsculos pedacinhos de carne ou cabeça de peixe salgada.
Isso foi servido todos os dias, durante toda a viagem, eles não aguentavam
mais.
Um dia aconteceu um motim, os homens se reuniram em frente à porta do
capitão e exigiram comida. As pessoas estavam morrendo de fome, os doentes não
conseguiam se recuperar pois estavam muito fracos. O capitão prometeu uma
solução, ele disse que no dia seguinte aportaríamos.
Assim que chegamos a um lugar chamado Pernambuco os mantimentos e
água foram reabastecidos e parecia que todos chegariam sãos e salvos, porém o
calor que fazia por essas bandas acabou deixando muita gente doente, além de
uma epidemia de desinteira que começou depois que alguns marinheiros subiram
para seguir conosco até o último destino. Tivemos mais algumas mortes, entre
elas o netinho de dona Heidi, a amiga com quem dividia as refeições. Mais uma
vez demos as mãos e em silêncio consolamos uma a outra, eu a consolava por sua
perda e ela mesmo sem saber me consolava pela minha vida que parecia estar
fadada ao sofrimento.
Foi então que em um amanhecer eu vi uma das coisas mais lindas que
meus olhos já avistaram. Era uma praia com uma pedra muito grande ao fundo,
muitos pássaros coloridos voando, um céu azul sem igual; me falaram que eu
tinha chegado ao Rio de Janeiro.
A descida foi tumultuada, lamento até hoje por não ter encontrado
Dona Heidi, nem sei onde ela foi parar.
Eu fiquei três dias no Rio de Janeiro e aquele local me pareceu
incrível, diferente de tudo o que eu tinha visto até então, aquela natureza
exuberante, montanhas com formatos diferentes e praias, nas quais o comandante
não me deixou ficar por muito tempo, pois ele disse que eu poderia queimar
minha pele.
O comandante Hans tinha um veleiro e foi com ele que viemos até Santa
Catarina. Era um veleiro pequeno e seguimos apenas em 6 pessoas: O comandante,
o capitão, três tripulantes e eu. Aparentemente o comandante Hans perdeu a
língua depois que chegamos ao seu veleiro, ele passou a maior parte do tempo
dentro da cabine do capitão e eu em meu camarote, lendo e esperando o tempo
passar. Parecia que eu tinha passado anos presa naquele veleiro, mas na verdade
a viagem durou apenas 6 dias. Logo chegamos ao porto de Santa Catarina.
Eu imaginava tio Albert diferente e não posso negar que me espantei
quando vi ele, trajado como um simples camponês. Vi ele de longe, enrolando
seus bigodes e quando ele nos avistou veio meio sem jeito ao nosso encontro. Eu
estava com vergonha, pensei que poderia estar sendo um peso para eles. Oras, de
uma hora para outra eles foram obrigados a criar uma criança.
Me despedi do senhor comandante e pegamos uma estrada até o Barracão.
Foram mais 4 dias de viagem. Nunca tinha visto uma estrada como aquela na
Europa. A carroça atolava sempre e quando descíamos nos atolávamos a cada passo
com barro até os joelhos. Em alguns trechos o mato invadia a estrada e chegava
a rasgar a roupa.
Na primeira noite não consegui dormir, nos atrasamos e não
conseguimos chegar a uma hospedaria ou rancho de tropeiros antes do anoitecer,
então tivemos que improvisar um acampamento junto a carroça. Os barulhos vindos
da escuridão me matavam de medo, mas decidi que dali para a frente eu não
queria mais sentir aquilo, que ia enfrentar meus anseios e encarar tudo o que a
vida me reservasse.
Eu não sabia para onde estava indo e à medida que avançávamos parecia
que estávamos indo cada vez mais para o meio da selva.
Quando finalmente chegamos ao Barracão a primeira pessoa que conheci
foi o frei. Eu estava exausta, imunda e faminta. Ele me serviu um almoço,
ofereceu a casa para um banho e enquanto meu tio arrumava uma das rodas da
carroça, que tinha estragado alguns kms antes de chegarmos ficamos conversando;
foi a primeira vez que alguém parecia realmente se importar comigo. Tio Albert
se importava, eu sei, mas também não era um homem de muitas palavras, assim
como o comandante.
Quando cheguei em casa e vi tia Matilda pela primeira vez, foi como
se já nos conhecêssemos há anos. Ela abriu os braços e disse:
- Minha filha, eu estava te esperando!
Foi espontâneo, eu a abracei e chorei. Chorei pela morte do meu pai,
pela travessia sem fim do oceano, pela fome dos outros imigrantes, pelas mortes
no navio, por meus medos, pelo cansaço e pela incerteza, porém em um só abraço
voltei a ter chão para meus pés, vi que não estava sozinha no mundo e que
aquela seria a mãe que um dia perdi.
Depois lembrei de algumas coisas que o Frei me disse:
- Minha filha, eu sei que vir parar aqui pode te parecer um castigo,
sua vida mudou drasticamente em pouco tempo, mas em tudo na vida precisamos
procurar um lado bom. Essa é uma cidade abençoada, de gente boa, trabalhadora,
com uma natureza farta. Certamente essa terra, assim como a família de seu tio
te acolherão como uma filha e neste solo você vai encontrar a força e a
sabedoria para se tornar uma grande mulher.
De alguma maneira as palavras do Frei tocaram-me profundamente.
Demorou algum tempo para eu reconhecer tudo isso como minha nova vida, mas
reconheci.
Aprendi a viver desse jeito simples e a ter uma família numerosa.
Aprendi que tudo na vida merece um segundo olhar e que às vezes Deus realmente
escreve certo por linhas tortas. Morro de saudade do meu pai, mas hoje imagino
como minha vida ainda seria triste se eu nunca tivesse me mudado para o
Barracão.
Em tardes chuvosas ainda lembro de tudo isso com tristeza, mas na
grande maioria do tempo eu tenho a felicidade como grande companheira. ”
Já tinha
anoitecido e tia Matilda bateu a porta para chamar Eva para o jantar.
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