Eva Schneider em: O presente da Imperatriz


Sempre que Eva vivia alguma aventura a escrevia no livro em branco que ganhou de seu pai. Ela caprichava na letra e ficava horas escrevendo como cada aventura acontecia. Morria de saudades dele e escrevendo naquele livro sentia como se tivesse lhe contando tudo. Eva achava que ele gostaria da vida que eles levavam no Barracão, mas não sabia se ele conseguiria viver muito tempo sem as modernidades de Heidelberg. Não existiam carros, aviões, nem trens, muito menos luz elétrica. A iluminação era feita por velas e lampiões a querosene. No começo a menina se incomodava e achava estranho acordar com o cheiro forte do querosene queimado e com a ponta do nariz preto, mas até a isso ela já havia se acostumado. A vida seguia um ritmo completamente diferente da vida na agitada Heidelberg. Lá era comum muita gente andando pelas ruas, o ir e vir das pessoas para a universidade, carros andando e até aviões e dirigíveis passando pelo céu. No Barracão sempre que passava algum carro ou caminhão pela estrada chamava atenção, mas o que estava mesmo chamando a atenção nos últimos tempos, era um tal de aeroplano que quase matou Sabú do coração quando o viu pela primeira vez.
Sabú havia ido levar comida para tio Albert na roça. Na volta, ao atravessar um taquaral, ouviu um ronco muito feio e ficou apavorado. O suor frio percorreu seu corpo, ele nunca tinha ouvido aquele ronco antes. Nem o gritador berrava tão alto.
- O que é isso? - Pensou ele.
Suas pernas ficaram bambas e o ronco aumentava, tornando-se mais forte e mais próximo. Cambaleando e achando que o bicho se aproximava e que na certa não escaparia, começou a se mover e a gritar o mais alto que podia. Ao erguer os olhos, deu com tia Matilda em sua frente, também boquiaberta dizendo: [1]
- Meu Deus, como que é possível isso voar?
 Era o tal aeroplano, que só se fala na vila do Barracão. Sabú nunca tinha visto uma coisa daquelas e Eva teve trabalho para explicar que aquilo era um avião e que pessoas podiam entrar dentro dele e voar. Existiam boatos que o aeroplano “raspou” na rocha da Serra do Camelo na Santa Bárbara e foi ele que fez parte dela ficar pelada. O fato é que o aparecimento daquele avião sobre a vila tinha causado o maior agito. Só se falava nele durante toda a semana. Só se deixou de comentar sobre o tal avião para se falar sobre a grande festa de Santa Tereza, que aconteceria no domingo.
Domingo era dia de todo mundo ir para a antiga Colônia Militar Santa Tereza, para uma grande missa em honra a Santa Tereza, a padroeira da comunidade.
Todos os moradores da comunidade sentiam muito orgulho em dizer que a imagem de Santa Tereza, a que ficava na igreja, tinha sido um presente da Imperatriz do Brasil, Tereza Cristina. A colônia Militar de Santa Tereza também teve esse nome em homenagem a imperatriz e foi a primeira Colônia Militar do estado, algo muito importante. Foi criada antes da vinda dos colonos e tinha como propósito defender as terras, povoar a região e dar mais segurança aos tropeiros que faziam o trajeto serra litoral.
Tereza Cristina tinha mandado a Santa como um presente, uma forma de demonstrar o carinho que sentia pela Colônia Militar e também como proteção. A fé dos colonos pela santa era imensa. Era uma obra sacra linda e certamente muito valiosa.
Quando o carroção de tio Albert estava chegando na entrada da colônia, começaram a notar que existia algo de estranho acontecendo. Todos estavam reunidos em frente à igreja, enquanto o frei da porta de Igreja dizia:
- Roubaram a Santa Tereza!
O olhar de consternação podia ser visto no rosto de todos:
- Como assim, tinham roubado “o presente da imperatriz”?
Tia Matilda estava do lado de uma senhora que começou a contar:
- Foi agora! Não faz nem meia hora que as mulheres terminaram de colocar as flores ao redor da Santa arrumando-a para procissão. Não faz nem meia hora.
O frei então deu uma ordem:
- Fechem as entradas da Vila, ninguém entra e ninguém saí até encontrarmos a Santa.
Tio Albert levantou a mão e pediu a fala:
- Com licença, estou vindo agora do Barracão e não encontramos ninguém no sentido contrário, a não ser um tropeiro que já estava chegando no Barracão, logo não poderia ser ele.
 Assim que tio Albert terminou de falar, um outro colono respondeu:
- E eu tô vindo da Barra da Jararaca e também não encontrei ninguém no sentido contrário, então o ladrão deve estar ainda por essas bandas.
 Um clima de tensão e desconfiança pairava no ar.
O frei viu Eva e foi falar com a família, cumprimentou a todos e depois falou:
- Minha filha, veja bem o que aconteceu... uma tragédia! Esse povo tem muita fé na proteção da Santa, perdê-la vai fazer com que se sintam desprotegidos.
Eva disse:
- Tem alguma coisa que eu possa fazer frei?
E ele respondeu:
- Pouca coisa, ninguém viu nada, existem poucas pessoas desconhecidas por aqui e a única pista que o ladrão deixou foi o chapéu.
Eva disse:
Posso ver o chapéu frei?
Ele respondeu:
- Claro minha filha, mas em pouca coisa vai ajudar, venha comigo.
Frei, Eva, Ceci e Sabú foram para dentro da igreja, onde alguns membros da comunidade tentavam organizar uma forma de ir em busca da Santa. O frei entregou o chapéu a Eva e disse que logo voltava.
Eva apanhou o chapéu e começou a analisá-lo. Ceci encarou a amiga e disse:
- Eva, até seu tio tem chapéu igual a esse, é o modelo vendido na loja do seu Schwinda lá no Sombrio. Será difícil! Quase todo mundo tem um desses!            
Mas ela continuou encarando o chapéu, virando-o, revirando-o, analisando o seu interior, cheirando-o e tentando descobrir algo que nem Ceci, nem Sabú conseguiam identificar o que era.
O frei retornou e Eva falou:
- Frei, se o ladrão ainda não fugiu, podemos descobrir quem foi usando as pistas dadas por esse chapéu.
O frei se espantou e perguntou:
- Mas como minha filha, isso seria possível?
Eva disse:
- Foi o senhor mesmo que falou que gostaria de ter a fé nas coisas que eu tenho, vamos tentar.
O frei chamou os outros membros da comunidade que eram responsáveis pela capela: João, José, Juca e Manoel e avisou que Eva iria ajudá-los. Juca se opôs e foi desrespeitoso com o frei dizendo:
- Com todo o respeito, o senhor não deve estar batendo bem da cabeça em querer resolver um assunto sério desses usando uma piralha.
Eva não esperou nem o frei sair em sua defesa, apenas se colocou à frente e disse:
- Senhor Juca, se o senhor tiver alguma ideia para pegar esse ladrão, que seja melhor do que a minha, vá em frente, mas acho que gostaria do que eu tenho a dizer.
Juca olhou para os amigos e como não tinham nenhuma opção melhor ele concordou com a cabeça e Eva começou a falar:
- Senhores, descobri algumas coisas analisando esse chapéu, primeiro faremos uma seleção. Pediremos para que todos os homens sem chapéu entrem aqui na igreja.
 Juca se opôs:
- Mas porque isso, todos os homens sem chapéu roubaram a Santa?
Eva disse:
- É Claro que não senhor Juca, mas assim limitaremos nosso número de suspeitos e conseguiremos resolver o caso, pois quem roubou a Santa certamente está sem chapéu. Ele não teria um chapéu reserva.
O frei disse:
- Vamos começar!
José foi até a porta e falou:
- Por favor, todos os homens sem chapéu queiram entrar na igreja.
Um princípio de algazarra se formou na rua, os homens que estavam sem chapéu se sentiram ofendidos, mesmo assim entraram. Um total de 27 homens entrou na igreja e Juca disfarçava um sorrisinho, como se estivesse rindo pelo número de suspeitos ainda ser bastante grande. Eva encarou os suspeitos e começou a dispensar alguns deles:
- Você fica, você, você e você saem.
Juca olhando aquilo e não entendendo nada disse:
- Muito bem menina, agora você vai descobrir quem roubou a Santa olhando para a cara dos suspeitos. Fritz que você mandou ficar, tem cara de ladrão?
Eva respirou fundo, enquanto seu Fritz fazia cara de poucos amigos, encarando Eva e o frei. Eva disse:
- Meu caro senhor Juca, não estou liberando suspeitos aleatoriamente, se você tivesse usado toda essa inteligência que usa para me julgar, analisando o chapéu, certamente teria percebido que ele é de um tamanho grande e que ficaria enorme na cabeça de qualquer um desses homens que dispensei.
Fritz, um alemão encorpado e com quase dois metros de altura falou:
- Isso quer dizer que sou suspeito apenas por ter a cabeça grande?
Ao que Eva rebateu:
 - Não senhor Fritz, tenha paciência, não estou acusando ninguém pelo roubo, só peço que colaborem. Quem não tem nada a temer não precisa se preocupar.
Eva com uma maturidade incomum para uma menina tão jovem continuou a seleção. Ao final restavam 9 dos 27 homens dentro da igreja e Eva falou:
- Temos agora 11 suspeitos.
 O frei a encarou e disse:
- Eva, restam apenas 9.
Ao que Eva respondeu:
- Não frei, restam 11, pois o senhor Juca e o senhor Manoel também estão sem chapéu e são homens grandes.
O frei não escondeu o medo da reação dos dois, pois certamente tomariam aquilo como uma ofensa enorme. Juca partiu em direção de Eva e Ceci se colocou em sua frente!
- Nem pense em colocar a mão nela senhor!.
Algumas pessoas morriam de medo de Ceci e Sabú, que apesar de serem extremamente carinhosos e serenos eram bugres e este fato por si só já bastava para deixar muita gente de cabelo em pé e Juca parecia ser um desses, pois apesar de Ceci ser apenas uma menina, ao encarar Juca ele recuou. O frei disse:
- Vamos manter a calma meu povo, vamos manter a calma.
Encarando Eva com um olhar bastante forte falou:
- Eva jamais acusaria alguém sem ter provas, não é mesmo?
Nesse momento o frei estava começando a não ter mais certeza de que teria feito a coisa certa indo atrás das ideias de uma menina de apenas 12 anos.
Apesar dos protestos os homens ficaram enfileirados, e Eva ordenou:
- Que fiquem apenas os 5 homens que cortaram o cabelo recentemente.
Eles se olharam sem entender e Eva explicou:
- No interior de 5 chapéus existem pequenos pedacinhos de cabelo, ou seja, os donos desses chapéus cortaram o cabelo recentemente.
O frei ficou de boca aberta, não sabia direito onde tudo aquilo iria dar, mas não conseguia esconder a surpresa que tinha a cada dedução de Eva.
Restavam na igreja: Fritz, Juca, Manoel, um homem de fora que provavelmente estava passando pela vila e um tropeiro, com cara de poucos amigos e uma aparência desleixada. Juca deu um passo à frente e falou:
- É evidente frei, deve ter sido um desses dois homens, apontando para o forasteiro e para o tropeiro, pois jamais um de nós faria algo desse tipo.
 E Eva disse:
- Por favor sentem-se, pois eu já sei quem é o dono do chapéu.
Todos estavam encarando Eva e ela falou:
- Meus caros amigos, eu já sei quem é o dono desse chapéu. E senhor Juca, uma coisa que deverias aprender é a não julgar os outros. Sendo um homem da igreja é muito feio que o senhor não siga os mandamentos.
 Juca colocou fogo pelas ventas e berrou:
- Então sabichona, quem é o dono do chapéu?.
 Eva encarou o frei e disse:
- O dono do chapéu é o senhor Manuel!.
Assim que Eva terminou de falar Juca começou:
- É o fim! Agora você vem acusar meu amigo!?
Enquanto Juca falava, Manoel levantava e tentava correr para a saída, mas Fritz o perseguiu e impediu sua fuga. Todos estavam em silêncio e o frei perguntou:
- Como você chegou a ele Eva?
Eva então respondeu:
- Frei, o chapéu está também sujo com algo viçoso e oleoso, logo, só podia ser brilhantina. Dos 5 suspeitos que restaram, senhor Manoel era o único que tinha brilhantina no cabelo. Eu deduzi desde o início, mas achei que não fossem acreditar em mim se eu o acusasse já no princípio, logo resolvi ir provando aos poucos.
Manoel foi interrogado por Juca e acabou confessando. Ele roubou a Santa e iria entregar a um primo que morava em Florianópolis para que ele vendesse e com o dinheiro pretendia se mudar para um local mais perto do litoral. Toda a comunidade ficou muito desapontada, pois Manoel era tido por todos como um homem bom e incapaz de fazer tal coisa.
O frei falou para a comunidade que não deveriam julgá-lo. Manoel era descendente de açorianos, um povo que tem grande ligação com o mar. Certamente estava com saudades de ser um pescador e por isso cometeu esse ato desesperado, já que nos últimos anos suas lavouras iam de mal a pior. Isso não justificava a ação do homem, mas ele pediu para que a população deixasse que a justiça o julgasse.
A santa foi novamente colocada no local para procissão. Depois do almoço, quando todos comemoravam o retorno da Santa ao seu local, Juca encontrou Sabú, Ceci e Eva brincando no gramado e foi falar com eles.
- Crianças, eu gostaria de pedir desculpas pelo meu comportamento. Eu fui grosseiro e me sinto envergonhado, mas é que às vezes é difícil para mim admitir que uma criança seja mais esperta do que eu. Em nome de toda a comunidade eu agradeço pelo que fez Eva, seremos eternamente gratos e peço mais uma vez, que me desculpe.
Ela deu um abraço em Juca e disse:
- Muitas vezes a sabedoria não vem apenas com o tempo e sim com a maneira que se olha para as coisas, eu sempre procuro ver algo mais, ver detalhes que muitas vezes passam despercebidos aos olhos dos menos atentos e isso faz com que eu saiba de coisas que nem todos sabem.










[1] O encontro de Sabú com o aeroplano foi baseado em história semelhante contada no livro “Sementes de Amor”, da autora alfredense Terezinha Andrade.



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