Marrocos - 2019


Dizem que o destino é como areia fina: escapa pelos dedos, mas gruda na pele. Minha viagem ao Marrocos foi assim — inevitável, quente, intensa. E como tudo que é escrito nas estrelas, não poderia acontecer de outro jeito.

Se em algum momento você perceber ecos da Jade, bordões do Albieri ou trilhas que embalam lembranças dos anos 2000, não estranhe. O Clone foi minha porta de entrada para esse universo. Então, não estranhe se, em meio às minhas palavras, surgir um "isso é haram", um "maktub" ou qualquer outro devaneio de quem cresceu sonhando com desertos e véus esvoaçantes.

Saímos de Lisboa num voo curto e direto para Marrakech, coração pulsante do Marrocos. Nosso destino: uma casa no meio da Medina, a cidade velha, onde o tempo caminha ao ritmo das rezas e do tilintar das xícaras de chá. O Airbnb era imenso. Imenso mesmo. Daqueles lugares que a gente entra já se sentindo parte da novela: mosaicos nas paredes, fontes no pátio interno, uma arquitetura que parecia sussurrar segredos em árabe.

Mas antes de viver minha fantasia marroquina, o roteiro exigiu seu momento perrengue chique. Logo no aeroporto, fomos recebidas por uma competição acirrada entre taxistas — cada um tentando ganhar a corrida como se valesse um camelo premiado. E adivinha? Entramos justamente no táxi mais velho da fila.

Como boas viajantes despreparadas, só ao pisar no país descobrimos que inglês não é exatamente a moeda linguística por lá. Árabe é a língua oficial, e o francês, herança da colonização, vem em segundo lugar. Resultado: o taxista falava, gesticulava, apontava para as paisagens e repetia, com entusiasmo, "atrás da montanha, atrás da montanha!"

Ficamos um bom tempo sem entender nada, até que o contexto se revelou: ele estava se referindo às imponentes Atlas Mountains, que nos observavam ao longe, silenciosas e eternas como o próprio destino.

Maktub.

Quando finalmente chegamos ao endereço indicado, confesso: bateu um leve pânico. Por um segundo, pensei que tínhamos sido atraídos para um cativeiro. As ruelas estreitas, as portas fechadas, o silêncio... tudo parecia o cenário perfeito para uma novela policial. Mas logo a porta se abriu e o anfitrião surgiu, todo sorridente, chamando por “Léo-naRR-do”, com um sotaque francês tão carregado que levamos uns bons minutos para perceber que ele estava falando com a gente.

Dentro da casa, havia algumas pessoas à nossa espera, oferecendo-se para cozinhar para nós. Recusamos com educação e, em vez disso, o anfitrião preparou um chá. Mas não foi um chá qualquer. Ele serviu a bebida de forma teatral, despejando o líquido da chaleira a mais de um metro de altura, como manda a tradição marroquina — e eu já me senti dentro de O Clone, com direito a trilha sonora imaginária ao fundo.


Mal colocamos as malas no chão e já saímos para explorar. Era 31 de dezembro, e tínhamos uma missão: encontrar um espumante para brindar a chegada de 2019. Cruzamos a Jemaa el-Fna como quem atravessa um portal entre mundos. A praça mais famosa de Marrakech não é só um endereço no mapa — é um espetáculo. Sob o sol escaldante, vimos encantadores de serpentes hipnotizando o tempo, vendedores anunciando poções milagrosas, mulheres oferecendo tatuagens de henna, e um burburinho que parecia sair de um roteiro místico escrito por Alá. Ali, no meio daquele caos harmônico, entendi: sobre as nossas cabeças, o sol; sob os nossos pés, a história em movimento.


Foi também ali que esbarramos numa realidade menos poética. Ao tentarmos comprar bebidas para a ceia, fomos barradas. Literalmente. Porque éramos mulheres. Somente o Leonardo pôde entrar na loja, como se estivéssemos envolvidas em alguma operação secreta. Foi o momento em que senti o peso de estar numa sociedade patriarcal, onde ser mulher é, muitas vezes, sinônimo de silêncio.

Com os vinhos contrabandeados na mochila (um brinde quase clandestino), passamos pela praça novamente — e tudo havia mudado. As barracas de comida haviam tomado conta do espaço, acesas como estrelas caídas do céu, enquanto o som dos tambores se misturava à fumaça dos tagines e ao riso de quem não tem pressa.

Foi nesse clima que uma cigana agarrou minha mão e, ignorando todos os meus "não", começou a tatuá-la com henna. Nem Jade teria ousado tanto. Eu fiquei paralisada, quase chorei, mas no fim paguei. Pas-palhona. Saí de lá esfregando a mão no chão da praça, tentando apagar o que eu nem havia pedido. Sim, as tatuagens de henna são lindas — mas naquele momento, o que eu queria mesmo era minha mão de volta.

Celebramos a virada do ano em casa, num silêncio quase sagrado. Nenhum foguetinho cortou o céu da medina. Mas algo nos dizia que tínhamos feito tudo certo. 2019 chegou sem barulho — e foi, sem dúvida, um dos anos mais bonitos da minha vida. Maktub. 


No dia seguinte, seguimos explorando a Medina com os olhos ainda embriagados da noite anterior. Nossa primeira parada foi o Palácio da Bahia, um verdadeiro oásis de arte e arquitetura marroquina, escondido por trás de muros discretos. Construído no século XIX, o palácio já serviu de residência para um grão-vizir e seu harém — e é impossível não imaginar as histórias sussurradas entre aquelas paredes.


Cada sala parecia ter um segredo, um detalhe que pedia silêncio e contemplação. O pátio central, com sua fonte cercada por mosaicos, era como um espelho do céu. Andamos lentamente por ali, como se estivéssemos pisando em tapeçarias invisíveis. Tiramos muitas fotos, claro — e a cada sala nova, o teto nos pedia atenção. Olhe para cima, diziam os vitrais coloridos, os entalhes de madeira, o requinte em forma de geometria. Um lugar onde a beleza mora em cada centímetro.

De lá, seguimos andando até encontrar um restaurante simples, em uma das muitas pracinhas escondidas da Medina. Pedimos um tagine de cordeiro com legumes, servido ainda borbulhante num prato de barro rústico e perfumado. A apresentação era quase cerimonial: as batatas, os tomates e os pimentões estavam dispostos como se fossem camadas de uma oferenda ao paladar. O vapor subia em espirais perfumadas de açafrão, coentro e cominho, enquanto o khobz, o tradicional pão marroquino, repousava ao lado como um convite a abandonar os talheres e mergulhar na experiência com as mãos. Saboreamos aquele prato como quem escuta uma história milenar sendo contada em temperos.



Depois do almoço, voltamos a caminhar pelas ruelas da Medina — esse labirinto vivo onde tudo se vende, tudo se negocia, tudo se transforma. Entramos no modo pechincha: compramos nossos lenços para a cabeça e aprendemos a usá-los com um vendedor que, encantado pelos olhos da Guiga, disse que ela valia uns 15 camelos. Não sabemos se isso era elogio ou oferta de casamento, mas, pelo tom, parecia coisa boa.


Enquanto andávamos, os alto-falantes das mesquitas começaram a ecoar pela cidade. Era hora da oração. Aquele som forte, quase hipnótico, preenchia o ar com uma espiritualidade que nos atravessava mesmo sem entendermos uma palavra. Os sinos do mundo cristão são metálicos; ali, o chamado era feito com voz humana. E era impossível não se emocionar.

Com o coração ainda vibrando, compramos nossos ingressos para o tão sonhado tour pelo deserto do Saara. Era real: íamos cruzar dunas, dormir em tendas e ver o sol nascer no meio do nada. Só de imaginar, o estômago já fazia festa.

Encerramos o dia no Café Argana, um dos mais tradicionais de Marrakech, com vista privilegiada para a Jemaa el-Fna. O lugar, hoje cheio de vida, carrega em seu passado uma cicatriz profunda: em 2011, foi alvo de um atentado a bomba que tirou a vida de 17 pessoas. Mas como tudo em Marrakech, ele renasceu. Com elegância e resiliência, reabriu as portas e voltou a acolher turistas do mundo inteiro. Sentamos ali, pedimos um chá de menta, e vimos o sol se pôr por trás dos telhados da cidade, tingindo tudo de laranja, dourado e silêncio. À nossa frente, a praça fervilhava e a gente deu uma passadia por ela antes de ir dormir, para nos prepararmos para a aventura. 


No dia seguinte, partimos cedo. Ainda era noite quando deixamos Marrakech para trás e pegamos a estrada rumo ao deserto. O motorista da van nos esperava com cara de quem já tinha levado milhares de almas naquela mesma travessia. E talvez tivesse mesmo — porque aquela estrada parecia uma rota de peregrinação.


Aos poucos, o céu começou a clarear. E sob as nossas cabeças, o sol. Um novo sol, alaranjado e corajoso, que escalava as Montanhas do Atlas com a mesma disposição que nós. A cada curva, o cenário mudava: vilarejos berberes entalhados nas encostas, cabras desafiando a gravidade, e casas de barro que pareciam parte da própria montanha.

Nossa primeira parada foi em Ait Ben Haddou — e ali, tudo pareceu um set de cinema. Porque já foi. Filmes como Gladiador e A Múmia foram rodados ali, e não é difícil entender o porquê: a cidade de barro, com suas passarelas suspensas e torres ornamentadas, parece ter sido desenhada para o cinema. Caminhamos pelas ruelas com os olhos cheios de areia e admiração. A paisagem era de filme, mas a excitação era real.

Seguimos viagem passando por Ouarzazate, a "Hollywood do Marrocos", onde os estúdios de cinema coexistem com a aridez do deserto. Paramos para almoçar e respirar — porque a estrada era longa e o corpo sentia.

À medida que avançávamos, o verde ia sumindo, e o marrom dominava tudo. No caminho, vimos palmeiras solitárias, crianças acenando nas margens da estrada e o tempo sendo medido por sombras que se alongavam. O silêncio começava a se instalar. O Saara nos chamava.

Chegamos em Merzouga ao entardecer. Ali, onde o asfalto termina e começa a eternidade. Trocaram nossa van por camelos, e ali mesmo começou a travessia mais mágica da viagem.

No fim da tarde, coloquei o lenço que havia comprado na Medina cuidadosamente na cabeça — como se aquilo me autorizasse, enfim, a fazer parte da cena. O sol começava a se esconder por trás das dunas quando montamos em nossos camelos e seguimos em comitiva rumo ao deserto. Era cena de filme. E a trilha sonora tocava dentro de mim: algo entre Desert Rose e os tambores de O Clone.

Os camelos eram bem mais altos do que eu imaginava. E o cheiro... também. Uma mistura de couro seco, poeira quente e uma certa rusticidade que deixava claro: glamour não se carrega nas corcovas. Ainda assim, havia algo de mágico e excitante naquela travessia. O mundo à nossa volta ia ficando dourado, as sombras se alongavam e o tempo parecia se curvar diante da paisagem.

Chegamos ao acampamento já com o céu vestido de estrelas. Nossa tenda era simples, mas surpreendentemente aconchegante: tapetes cobrindo o chão de areia, camas com lençóis limpos, cobertores grossos para enfrentar a noite fria. Ali, no meio do nada, o silêncio era profundo — e, ao mesmo tempo, cheio de significado.

Mais tarde, fomos até a tenda coletiva onde seria servido o jantar. E então, a surpresa da noite: no centro da mesa, uma tigela imensa de sopa, acompanhada por algumas poucas colheres — todas destinadas a nós e a outros quatro viajantes que jamais havíamos visto na vida. Nada de pratos, nada de cerimônia. Todos deveriam comer da mesma tigela, em revezamento espontâneo. Em tempos pré-Covid, talvez fosse apenas pitoresco. Naquele momento, foi quase um atentado à sanidade. Resolvemos discretamente servir a sopa em nossas xícaras e evitar a comunhão de saliva. Haram? Talvez. Prático? Com certeza.

Depois do jantar, fomos convidados para a fogueira. A areia ainda guardava o calor do dia, e ali, sob a imensidão do céu, começou o que talvez tenha sido o momento mais encantador da viagem. Os berberes — donos do acampamento e da alma do deserto — trouxeram tambores, flautas e palmas. Cantaram músicas típicas, ritmadas e alegres, que faziam os pés baterem sozinhos no chão. Um deles olhou para nós, sorriu com os olhos brilhando e, num tom bem-humorado, puxou "Waka Waka".

E sim, cantamos juntos. Mas vale lembrar que essa música, embora mundialmente conhecida pela voz da Shakira na Copa de 2010, tem raízes muito mais profundas. A melodia e o refrão vêm de uma canção militar camaronesa chamada “Zangaléwa”, popularizada pelo grupo africano Golden Sounds nos anos 80. A versão da Shakira deu ao mundo uma amostra desse ritmo contagiante, mas ali, no meio do Saara, a sensação era de que a música voltava para casa.

Dançamos entre as dunas com os rostos iluminados pelo fogo e o coração aquecido por algo que não cabia em palavras. Era tudo tão improvável, tão intenso, tão poeticamente estranho. Como se o universo tivesse decidido nos lembrar de que a vida acontece longe da zona de conforto — e de preferência, sob um céu estrelado no meio do Saara.

Era tudo tão improvável, tão intenso, tão poeticamente estranho. Como se o universo tivesse decidido nos lembrar de que a vida acontece longe da zona de conforto — e de preferência, sob um céu estrelado no meio do Saara.

Durante a noite, o termômetro despencou. O Saara, que horas antes era dourado e escaldante, virou um oceano de silêncio gelado. Fazia -2 graus, e não havia cobertor berbere que desse conta daquele frio. E como se o clima não bastasse, um burro miserável — que parecia ter sido possuído por todos os males da madrugada — passou a noite inteira gritando. Juro. Um grito doído, constante, que ecoava entre as dunas como se fosse parte de algum ritual ancestral de tortura sonora.


Ainda assim, às primeiras luzes do dia, acordamos animados para ver o nascer do sol no deserto. E foi lindo, claro. Um daqueles momentos que nem a insônia nem o burro conseguem estragar. As dunas ganhavam tons de laranja e rosa, e nós aproveitamos para tirar fotos dignas de capa de revista de viagem, posando como beduínas improvisadas, rindo da friaca e tentando manter o lenço na cabeça apesar do vento insistente.


Tomamos café — chá de menta, pão, geleia, mais chá — e, num piscar de olhos, já estávamos novamente montadas nos camelos, que dessa vez pareciam tão entusiasmados quanto nós: ou seja, nada. O meu fez uma cara de quem ia pedir demissão. E confesso que também pensei nisso. Mas seguimos, balançando de um lado pro outro, com a elegância possível de quem tenta parecer plena, mas está com dor no cóccix e com o nariz escorrendo.


Gravei muitos vídeos naquela manhã. Tantos. E perdi todos. Minha GoPro morreu na praia — ou melhor, na areia. Um erro técnico, um cartão corrompido, sei lá. Só sei que ficou tudo na memória.

White people problem? Talvez. Mas até hoje penso naquelas imagens perdidas como se fossem um capítulo arrancado do meu diário de bordo. Uma tristeza silenciosa. Daquelas que a gente nem comenta em voz alta, mas nunca supera de verdade.

Na volta, fizemos uma parada para o almoço e comemos um couscous marroquino, que me fez lembrar imediatamente do cuscuz nordestino — aquele mesmo, de milho amarelinho, com gosto de casa de vó. O marroquino era feito de sêmola, mais leve, cheio de legumes e especiarias, mas ainda assim, trazia uma memória familiar. O sabor era quase uma ponte entre o Saara e o Sertão.


Mais adiante, fizemos um tour a pé por Ait Ben Haddou, a cidade fortificada de barro e palha que parece saída de um livro de fantasia — e, de fato, já foi cenário de muitos filmes e séries. Gladiador, A Múmia, Príncipe da Pérsia… e, claro, Game of Thrones. Subimos pelas passarelas estreitas e paredes ocres, com o vento batendo forte no rosto e uma vista absurda lá de cima. Dali, se via as Montanhas do Atlas cobertas de neve, e por um instante eu me senti a própria Khaleesi, subindo escadarias rumo ao seu destino. Só me faltaram os dragões. E o aquecedor.

O vento ali era coisa séria. E enquanto ele bagunçava nossos cabelos e levantava a poeira das ruelas, me veio à cabeça um verso do Caetano Veloso:

"O mesmo vento que venta lá, venta cá.

E leva a areia do Saara pros automóveis de Roma."

Naquele momento, o vento era mais do que brisa: era lembrança, era ponte, era aviso. Levava com ele pedaços de tudo o que havíamos vivido — e soprava nos ouvidos uma certeza doce e melancólica: a viagem pelo deserto já estava acabando.

Novo dia, nova aventura em Marrakech.

Começamos explorando as ruínas do Palácio El Badi, um gigante de pedra vermelha construído há mais de 500 anos. O que restou daquele que já foi chamado de “o incomparável” são paredes altas, pátios descomunais e a imaginação tentando preencher os vazios com o que um dia foi. Caminhamos entre laranjeiras e sombras, cruzando galerias subterrâneas e subindo até a torre, de onde se avista a cidade inteira misturada ao horizonte das Montanhas Atlas, como se Marrakech tivesse sido costurada ao céu com linha de areia.

À tarde, trocamos as muralhas da cidade velha pela arquitetura contemporânea da parte nova de Marrakech. Fomos de tuki tuki, aquele táxi improvisado que balança mais do que transporta. Entre shoppings, galerias modernas e cafés com fachada de vidro, encontramos um outro lado da cidade: mais cosmopolita, mais ocidentalizada, mas ainda com alma marroquina. Passamos pela Praça 16 de Novembro, entramos no Carré Eden Shopping Center, demos uma volta entre vitrines e aproveitamos o momento para comprar algumas coisinhas no Carrefour, onde os preços pareciam respirar aliviados — e nós também.

À noite, retornamos à Jemaa el-Fna, dessa vez com outro objetivo: jantar no Le Marrakchi, um restaurante tradicional com vista para a praça, música ao vivo e apresentação de dança do ventre. A experiência foi um espetáculo por si só — o som dos tambores, o ritmo dos quadris, o cheiro da comida subindo em espirais... tudo era pura celebração sensorial. As dançarinas surgiam com candelabros equilibrados na cabeça, serpenteando entre as mesas com uma elegância hipnótica. Em certo momento, tive certeza de que estávamos na sala do Tio Ali.

O Leonardo, por sua vez, mal piscava. Não sei se era por respeito à Júlia ou por medo de ter que tirar 100 dólares da carteira e colocar na saia da bailarina, como vi alguns turistas fazendo com empolgação excessiva.

Dançamos juntos, brindamos com um vinho marroquino surpreendentemente delicioso, e rimos como se a noite fosse nossa. E foi. Tamanha era a minha empolgação que até me arrisquei a gastar todo o meu francês, pedindo a conta com a confiança de quem estudou o idioma por zero minutos:

— "L’addition, s’il vous plaît."

Quase uma parisiense — de barriga cheia e alma leve.

Mais um dia em Marrakech, e a essa altura já sabíamos: por mais que a gente tentasse planejar, a cidade sempre guardava uma carta escondida entre suas ruelas.

Começamos com uma visita ao Museu de Marrakech, um antigo palácio convertido em centro cultural que, ainda hoje, carrega no seu interior a grandiosidade de tempos antigos. O pátio central, com sua fonte, seus arcos e mosaicos, parecia ter sido desenhado para ser contemplado em silêncio — mas como resistir a fazer mil fotos?

Logo ao lado, visitamos a Madraçal Ben Youssef, uma das maiores escolas islâmicas do Norte da África. “Madraçal” significa escola, e ali os estudantes passavam os dias estudando e memorizando o Alcorão, algo parecido com o que acontece no catecismo católico, mas com uma carga de dedicação que impressiona. 

E então, o dia resolveu virar episódio de Alerta Marrakech.

Queríamos visitar os famosos currais de curtume, aqueles tanques coloridos onde se tingem peles e couros — típicos do Marrocos. O problema foi encontrar o caminho. Perdidas entre becos, fomos abordadas por um menino de uns 13 anos, que se ofereceu para nos levar até lá. Aceitamos, achando que era só seguir algumas ruelas. Mas quanto mais andávamos, mais as ruas ficavam desertas, estreitas e silenciosas. A cidade que fervilhava minutos antes agora parecia ter desaparecido.

Começamos a ficar inquietas. Dissemos ao garoto que preferíamos voltar. Ele insistiu. Dissemos mais uma vez. E foi então que ele soltou, num tom nada infantil, que se não pagássemos, ele chamaria o tio dele. A essa altura, começamos a ver outros rapazes se aproximando. A Guiga, do alto da sua coragem (ou adrenalina), quase partiu pra cima do guri. Juro. Já visualizávamos manchetes: “Brasileiras desaparecem em Marrakech após seguir guia mirim.”


Decidimos sair dali apressadas, sem olhar pra trás. Não sabemos até hoje se era golpe, ameaça ou apenas um susto mal calculado, mas o coração levou um bom tempo pra voltar ao ritmo normal. E o curtume… ficou pra próxima. Quem sabe numa próxima vida, reencarnadas em cabras mais destemidas.

No nosso último dia inteiro no Marrocos, como se o destino ainda quisesse nos surpreender uma última vez, colocaram uma serpente no meu pescoço, ali mesmo, no meio da praça. Na foto, eu apareço sorridente — mas por dentro, meu coração estava congelado, ou talvez tivesse parado de bater de susto. Rimos, trememos, registramos tudo. Depois, voltamos para casa para arrumar as malas. Só que nenhuma mala do mundo daria conta do que estávamos levando: as cores, os cheiros, os sons, os calafrios, os sabores, os silêncios do Saara, o chá derramado de um metro de altura. Era tanto que quase pagamos excesso de bagagem emocional. Na manhã seguinte, tomamos o melhor suco de laranja das nossas vidas ali mesmo, na praça onde tudo começou — e partimos com o coração leve, transbordando gratidão, areia fina e histórias para recontar por muitos anos.



Postar um comentário

0 Comentários