Eva Schneider em: O amaldiçoado


            As[1] crianças tinham ido acompanhar o frei até Santa Thereza, lá ia acontecer a 1ª comunhão e o padre convidou as crianças para passarem uns dias por lá com ele. Como senhorita Bernard não conhecia o local, aproveitou a oportunidade para conhece-lo. O frei disse também que ela poderia aproveitar a chance para conhecer a escola da comunidade, que era uma das maiores das redondezas e que tinha uma professora maravilhosa.  
            Assim que chegaram na comunidade Juca veio até o padre e disse que precisavam muito dele no Passo da Limeira, então assim que ele deixou suas coisas na casa paroquial saiu a passos largos junto com o homem, ele recomendou que as crianças e Senhorita Bernard fossem para a escola, Juca disse que a professora estava esperando ansiosa por eles.
A professora de Santa Thereza ficou muito contente com a visita. Todos achavam Senhorita Bernard muito importante e sempre queriam recebe-la da melhor maneira possível. Aquele dia em especial a escola estava bem agitada, todos só comentavam sobre o que tinha acontecido no bailão do Celso.
            - Quem é Celso? O que aconteceu? – Perguntou Senhorita Bernard.
            - Ah minha querida, isso é conversa dessa gente, não de ouvidos. – Disse professora Valdiva.
            - Mas nos conte a história professora, também estamos curiosos. – Pediu Eva.
            - Todos querem ouvir a história?
            - Sim professora, queremos! Nos conte por favor.
            A professora mandou que todos se acomodassem, inclusive Senhorita Bernard e as crianças e então começou a contar a história, que se referia a um fato muito curioso, que estava deixando todos com o cabelo em pé. Ela começou a contar:
- Vou começar bem do inicio, pois nossas visitas não os conhecem. Então, a história que vou contar a vocês é sobre Marli e Celso. Os dois sempre trabalharam bastante, comprando e vendendo mercadorias para a redondeza. Um dia a ideia cresceu fixa na cabeça do casal, construir um salão de dança. A partir de então, tardes dançantes e agradáveis bailes alegravam a região. A fama do salão do Celso cresceu. As festas ali eram muito divertidas.
A professora contava as coisas de uma maneira envolvente e já havia ganhado a atenção dos quatro visitantes. Ela prosseguiu:
- Como o tempo é um trem que não sabe ficar parado na estação, o tempo passou e certo dia, perto das festas de Páscoa, na quaresma, uma tarde dançante foi planejada e prepara com zelo. Marli, como de costume, fez mimos para decorar o salão, bandeirinhas, cartazes, flores, tudo tinha que estar muito acertado.
            Enquanto a dona zelosa arrumava tudo com carinho, corria a boca pequena dos inconformados, desde a pequena Passo da Limeira até as comunidades mais distantes, que quem dança na quaresma é pecador, cria rabo, o diabo assombra. Alguns arrepiados de medo atracaram-se nos seus terços a rezar em voz alta, outros se convenciam do pecado relembrando as aulinhas de catequese, outros ainda contrariados, usaram suas línguas afiadas em um mexerico sem fim.
            Contam o que contam e dizem os que sabem que no dia da tarde dançante estavam todos lá. Os bisbilhoteiros, os linguarudos, os que se benzeram e oraram muitas vezes. Tão logo a música começou um bailado se espalhou pelo salão. O medo deu lugar a um festejo onde os passos dos dançarinos iam de ensaiados a desajeitados.
            Foi só quando a tarde caia, anunciando a noite que se percebeu a presença de um jovem bem-apessoado, vestido de terno branco, chapéu, sorriso simplesmente luminoso e de uma beleza fascinante. Ninguém sabe ao certo, mas quando se viu ele dançava graciosamente com a jovem mais cobiçada daquela comunidade. Faceira por ser a escolhida pelo moço, com passos compassados num dois em um, foram dançando e se enamorando.
            - E o que aconteceu? – Perguntou Sabu afoito, no momento em que a professora fez uma pausa, ao que foi respondido por outro aluno da sala.
            - É de se prever o que aconteceu! Todo mundo sabe que não se pode dançar na quaresma.
            Senhorita Bernard, Eva, Sabu e Ceci estavam de olhos arregalados, querendo saber o que havia acontecido. Valdiva continuou a história.
            -  Ninguém sabe ao certo, mas o fato é que um cheiro forte invadiu o salão, fazendo com que os mais aligeirados sentissem cheiro de confusão e do baile foram se retirando, o cheiro era de enxofre e num segundo espalhou-se pelo salão. Foi então que um grito ecoou e uma correria se formou, corre pra lá e pra cá, como chegou o jovem de tamanha beleza evaporou, num BUUUMM malcheiroso, deixando para trás uma confusão e um diz que diz por todos os cantos do salão. Naquele desarranjo todo que se armou, alguns lançaram olhares satânicos, outros contavam terem visto no jovem um rabo de cavalo. Outros ainda testemunhavam que os chifres eram pontudos. Os incrédulos balançavam a cabeça sem querer acreditar. O certo é que o jovem foi procurado palmo a palmo em todo aquele território e nada encontraram. Até mesmo a polícia foi chamada para investigar, os cachorros saíram em uma caçada mata adentro e tudo mais e agora, parece que o seu Juca levou o frei até lá, para investigarem.
            Quando terminou a história Sabu já estava no colo de Ceci. Senhorita Bernard olhava incrédula para a professora, certamente ela tinha o dom para contar histórias de forma envolvente, mas ela não sabia se acreditava em tudo o que havia acabado de ouvir. Eva não sabia no que acreditar, parecia ser invenção do povo, mas acontecia tanta coisa sem explicação Barracão, que já haviam feito ela mudar de ideia, como o Soldadinho, o cachorro fantasma da Bica d’agua, a noiva de branco da Boa Vista... que não se admiraria naquilo também ser verdade.
            Uns diziam que o pai tinha mesmo visto o coisa ruim no baile, outro juravam que um conhecido havia dito que a história não era bem como estavam contando. O jeito foi professora Valdiva encerrar o assunto e começar sua aula.
            As crianças voltaram para a casa paroquial apenas no final do dia e não demorou muito para o frei aparecer por lá também, retornando do Passo da Limeira. Ele chegou contando que o pavor estava reinando por lá, todos estavam apavorados com a história que havia acontecido no final de semana.
            - E você acredita no que as pessoas estão dizendo frei? – Perguntou Eva.
            - De forma alguma! Mas é muito difícil convencer as pessoas do contrário, alguns afirmam que viram e não reencontrarem o tal moço, que evaporou feito a fumaça de enxofre, dava mais veracidade ao boato.
            - Mas ninguém o conhecia?
            - Não, ele nunca foi visto nessa região. Toda essa história é muito sem explicação. Ainda mais por eles estarem dançando na quaresma.
            Eles foram deitar mas Eva não conseguia dormir, então começou a conversar com Ceci e Sabu, que ainda estavam acordados.
            - Ceci, o que você acha que pode ser isso?
            - Não sei Eva, é muito estranho. Mas estou com medo, já pensou se for mesmo o que estão falando que é? Acho que nunca mais conseguirei dormir sozinha na vida.
            - Nem eu! Por isso que sempre devemos obedecer a Motta. Onde já se viu dançar na quaresma!
            - A senhorita Bernard disse que já dançou na quaresma e nunca aconteceu nada do tipo com ela.
            - Meu Deus, Eva! Não posso acreditar que ela fez uma coisa dessas!
            - Ceci, o mundo é muito grande e nem todo mundo pensa da mesma maneira, ainda mais em cidades maiores. Acho que a gente deveria procura-lo, para esclarecer isso.
            - Você só pode estar maluca, Eva! Procurar o coisa ruim?
            - Ceci, pare de ser boba! Deve existir uma explicação.
            A menina tentou convencer os amigos de no dia seguinte irem em busca do tal moço, mas não tinha jeito, não queriam de forma alguma acompanhar Eva.
            - Pois então eu vou sozinha! Tem que haver uma explicação.
            - Por favor Eva, não vá! É muito perigoso.
            - Se o Pedro estivesse aqui, com certeza ele iria comigo! Você se tornou uma covarde Ceci.
            No dia seguinte Eva até queria sair em busca do tal moço, mas por onde começar? Todos já estavam procurando por ele, sem êxito. Então a ideia que estava tão forte na noite anterior acabou morrendo. O assunto ainda tomava conta das rodas de conversa, mas pouco a pouco as coisas foram voltando ao normal.
            Eles passavam boa parte do dia na escola, mas a tarde ficava passeando pela comunidade. Tomando banho de rio, passeando de canoa, comendo frutas nos pés de árvores.
            Já era a terceira noite que dormiram em Santa Thereza, Eva começava a sentir saudades de casa, principalmente do seu mosqueteiro. Estava impossível para ela pegar no sono aquele dia, a noite estava abafada e os pernilongos estavam fazendo a festa. Ela resolveu levantar e ir até a rua para pegar um ar.
            Era uma noite muito clara, com a lua iluminando tudo! Ela amava noites de lua cheia, o brilho que ela proporcionava fazia a paisagem ter um encanto diferente. Ela aproveitou isso e foi caminhando até perto do rio, onde a lua fazia as águas brilharem.
            No caminho, escutou um barulho que parecia ser de choro, apressou-se curiosa para ver o que era, e encontrou um belo moço chorando na beira do rio. Quando ele viu Eva se aproximando a primeira reação foi correr, mas como viu que a menina o olhava com calma ele ficou;
- Olá, o que aconteceu? Posso te ajudar?
O moço respondeu algumas palavras em tupi e Eva se espantou, pensou que fosse a única branca que falava tupi no Barracão. Ela refez a pergunta em tupi, e ele também perguntou.
            - Quem é você?
- Bom... eu sou Eva! E você, quem é?
- Sou Jaci. Porque você não correu quando me viu? Não está espantada comigo?
- Claro que não! Porque estaria? Tenho algum motivo?
- Minha aparência... Meus pés, minha pele. Sou um monstro, você é a primeira que não corre ao me ver.
Após o jovem dizer essas palavras, Eva ficou um pouco amedrontada. Na verdade, ele era um moço muito bonito, não conseguia ver nada que o assemelhasse a um monstro. Mas quando ele deu alguns passos para trás e a lua passou a lhe iluminar, Eva se espantou e gritou:
-  Céus!!! – Seu primeiro impulso foi fugir, mas ela se segurou e acabou se dando conta que estava frente a frente com a criatura misteriosa que havia aparecido no baile da sexta-feira santa. Aquilo era impressionante.
- Calma menina, não vou fazer mal a você. Sente-se aqui que vou lhe contar minha história.
Eva sentou-se, e prestou muita atenção em cada detalhe do moço começou a contar. Ela não podia negar, estava morrendo de medo, mas foi vencida pela curiosidade.
- Olhe, como já disse, você é a primeira pessoa que não corre ao me ver! Você é muito corajosa, tem um coração puro e olhos abertos para enxergar a beleza interior. Parabéns e também obrigada. É a primeira pessoa com quem converso há anos.
- Obrigada! Agora por favor, me explique o que acontece com você!
- Bom, a língua que falo te revela minhas origens!
- Sim, você fala tupi, mas tem a pele e os olhos claros, como isso? Você não é bugre.
- Sou um bugre, sim! Quando eu era bebe minha família foi toda morta em um ataque, mas meu pai não conseguiu me matar ele poupou minha vida e me levou para sua tribo, onde minha mãe também me acolheu e eu fui criado com muito amor.
- Então você é um bugre branco?
- Sim, era isso que eu era!
- E o que aconteceu?
- Quando eu ainda estava em minha aldeia, eu tinha uma vida normal, tinha família, amigos, e uma convivência agradável com o meu povo, mas um dia isso mudou...
- Apareceu o Matinho Bugreiro e destruiu a sua aldeia também?
- Não, na verdade foi o amor que me deixou assim.
- O amor? Como assim?
- Eu era apaixonado pela moça mais linda de uma tribo, mas era uma aldeia inimiga. Eu estava caçando longe de nosso território e quando vi a bela Alira. Filha do cacique da aldeia, homem conhecido por sua força e maldade, matava a sangue frio e só fazia o que tinha vontade. Ela também me amava, mas o pai jamais aceitaria a nossa união. Mesmo assim me enchi de coragem e fui falar com ele, eu estava disposto a aceitar o que quer que fosse para poder ficar perto dela. Mas ele não cedeu, disse que jamais deixaria que o sangue de alguém de sua tribo se misturasse com o sangue imundo de gente da minha aldeia e ainda mais sendo um branco. Não gostei do que ouvi, também tenho minha honra. Então, a única solução seria pegar Alira e partir. Ela também não poderia ficar na minha tribo, mas poderíamos viver sozinhos, conhecíamos muitos lugares onde poderíamos viver o nosso amor. Então combinamos de fugir, estava tudo planejado, e em uma linda noite de lua cheia, partimos. Tudo parecia estar correndo bem, quando ouvimos um barulho na mata. Era o pai de Alira que estava nos perseguindo. Corremos o mais rápido que pudemos, mas eram muitos homens nos perseguimos, fomos encurralados e capturados. Ele tomou Alira pelos braços, deu uma surra nela bem na minha frente e eu não pude fazer nada, pois estava amarrado. Ele disse que me mataria, mas Alira implorou, dizendo que se mataria se eu perdesse a vida. Ele era um homem duro, mas também não queria perder sua filha, então disse o que faria comigo, seria pior do que a morte.
- O que ele fez então? – Perguntou Eva, querendo saber o resto da história.
Falou que jamais outra pessoa olharia para mim com os olhos que Alira olhava, vendo beleza e graça. Me levou até o pajé e ele começou um ritual terrível me amaldiçoando. Apenas duas vezes a cada ciclo da lua eu terei minha aparecia normal, mas quando a mesma lua me iluminasse o mostro se mostraria. No dia seguinte fui voltar à minha aldeia, achando que aquelas coisas ditas pelo Pajé eram apenas palavras sem sentido, mas ao chegar lá as pessoas correram, gritaram, fizeram um barulho danado, assustadas com o que viam. Ao ver meu reflexo na água, eu mesmo me assustei, com o que me tornei. Eu havia me tornado um monstro. Tive que deixar minha aldeia e me esconder no mato. Sempre que alguém me encontra fica com medo, foge ou ainda pior tenta me matar. Nos únicos dias que minha aparência continua a mesma é o único momento em que posso sair na rua, mas nem nesses dias eu devo me misturar com as pessoas. Da última vez que isso aconteceu eu estava me divertindo em uma festa, todos queriam conversar comigo, eu estava muito feliz, mas quando a luz da lua entrou no salão por uma fresca e me iluminou, eu me transformei nisso, destruí a festa, todos saíram correndo, alguns me perseguiram, depois tive que ficar escondido na mata. Estou condenado a essa maldição que nunca terá fim.
- Mas não existe nada que você possa fazer para se livrar disso?
- Não sei. Mas quem estaria disposto a ajudar um monstro como eu?
- Eu estou disposta a te ajudar e acho que sei quem pode saber alguma forma de quebrar essa maldição.
- Quem?
- A irmã do frei, Hanahira.
- Frei? Não, essa gente da igreja acha que sou o próprio diabo. Vão querer me matar.
- Confie em mim, eu não vou deixar nada acontecer com você.
- Não, de jeito nenhum.
- Você precisa confiar nas pessoas. Nem todo mundo é mal! Nem todo mundo só vê o lado ruim das coisas. Tenho certeza que eu e meus amigos podemos te ajudar.
- EVAAAAA, Evaaa! –  O frei estava chamando a menina.
- Não conte a ele sobre mim! Não conte a ninguém sobre mim!
- Tudo bem! Jaci, amanhã meu tio vem nos buscar, vá para o Barracão, moramos no Caeté! Me procure, eu quero te ajudar.
- Corra, ele vai me ver.
           
            Ela voltou para casa, disse ao frei que estava apenas se refrescando, mas ele ficou preocupado, dizendo que ela não deveria andar sozinha, com uma criatura solta, que ninguém sabia dizer o que ela. Eva não podia contar de forma alguma que havia passado esse tempo com Jaci e que ele era apenas vítima de uma maldição.
            Ela passou o dia seguinte distante, sem poder conversar com ninguém sobre a noite anterior e também preocupada, pois não sabia se um dia poderia ajudar Jaci, pois ele poderia nunca mais reaparecer. Voltaram para casa e já fazia dias que eles tinham voltado quando Ceci subiu o morro que dava acesso ao rio correndo e mais branca do que uma folha de papel, foi Eva que a acudiu.
            - O que aconteceu?
            - Eva, chama a madrinha e o padrinho, que o diabo está ali no rio! SOCORRO, SOCORRO!
            - Pare Ceci. O que você viu?
            - Eu vi o coisa ruim, eu vi, eu vi! Meu Deus, ele me viu, ele me viu, ele vai vir pegar minha alma... “Salve rainha, mãe de miseri...” – a brugrinha se atracou a rezar enquanto Eva dizia.
            - Me leve até lá!
            - Eu não, você agora perdeu o juízo de vez. Nunquinha que eu volto lá.
            - Vamos Ceci, me leve até lá... não é o diabo é Jaci. Eu o conheço!
            - O que? Conhece como, você não sabe o que eu vi. Aquilo não é homem, é coisa de outro mundo. Veio do inferno! Ai eu acho que to passando mal Eva, me larga, deixa eu correr.
            - Ceci, pare de ser besta, vamos.
            Eva praticamente arrastou a menina e fez ela contar onde tinha visto a criatura. Ela foi rezando pelo caminho e chegou em um ponto que ela disse que não iria mais avançar. Eva pediu para esperar ali enquanto ela caminha e falava:
            - Jaci? Jaci? Sou eu, apareça.
            Ele apareceu do meio do mato, fazendo Ceci se ajoelhar e começar a rezar o Credo em voz alta e com fervor.
            - Viu, é isso que eu causo quando me aproximo das pessoas. – Falou o moço apontando para Ceci.
            - Venha comigo, vamos te esconder até amanhã, quando eu irei cedo encontrar a pessoa que pode te ajudar.
            Eva contou a Ceci sobre a maldição e a menina muito a contragosto ajudou Eva a esconder Jaci no velho paiol, onde eles faziam a reunião do clube. Ele prometeu ficar ali até no dia seguinte. Eva precisava sair antes de todos levantarem e ir até a casa do frei, contar tudo a Hanahira e assim fez. Com a ajuda de Ceci ela saiu pela janela bem cedinho, antes dos tios acordarem e seguiu correndo pela estrada, com destino a casa do frei. Chegando lá, o frei estranhou a chegada da visitante e mais ainda quando não era com ele que ela desejava falar e sim com a irmã. As duas foram para o quarto e Hanahira estava boquiaberta quando ela terminou de contar a história.
            - Vamos até a sua casa! Preciso ver ele com meus próprios olhos, mas antes preciso ir até ali na varanda, para pegar um ar, estou me sentindo um pouco tonta e enjoada.
            - Você está doente?
            - Não, acho que deve ser apenas um mal-estar.
            Hanahira encilhou o cavalo e as duas foram em direção ao Caeté, deixando o frei cheio de perguntas. Quando chegaram lá, os tios ainda não tinham sentido falta da menina, que entrou novamente pela janela, enquanto Hanahira chegava.
            Disfarçaram um pouco e em um curto espaço de tempo Hanahira estava cara a cara com o amaldiçoado.
            - Minha nossa senhora! Eu nunca tinha visto nada desse tipo.
            - Você pode ajudá-lo? – Perguntou Eva.
            - Preciso descobrir.
            Hanahira começou a fazer uma séria de perguntas. Quanto tempo ele estava assim? Qual era a tribo a qual Alira pertencia? Quais palavras haviam sido ditas na hora em que a maldição foi lançada? Quem estava presente? Ela ia tomando nota de tudo.
            Aquele dia Eva matou as aulas, com a desculpa de estar ajudando Hanahira em algo muito importante. Quando as aulas acabaram Sabu foi até o clube, pois queria ver de perto o que as meninas tinham lhe contado. Lá chegando Hanahira disse:
            - Eu acho que posso ajuda-lo, mas precisamos ir até a minha cabana, preciso pegar algumas anotações e minhas ervas, minhas coisas, só com a ajuda delas e no local correto é que poderemos encontrar uma solução.
            - Mas como faremos? – Indagou Ceci.
            - Posso ir até minha casa e retornar amanhã. Com a solução...
            - Mas e ele... o... o... – Ceci tentou terminar a frase sem saber como se referir a criatura.
            - O Jaci... é Jaci o nome dele Ceci. – Disse Eva.
            - É... o Jaci, deixamos ele preso aqui?
            - Não, eu vou me esconder no mato, não quero correr o risco de ser morto, muito menos de matar ninguém do coração.
            - Acho perigoso Jaci, você deveria ficar aqui!
            Sem conseguirem convencer o amigo de que deveria ficar escondido no paiol, combinaram de se encontrarem no anoitecer do dia seguinte. Hanahira seguiu para Pedra Branca e os outro permaneceram no sitio, afoitos com notícias sobre o ritual que poderia ajudar Jaci. Matilda, Albert e até mesmo Senhorita Bernard, desconfiaram de que os três estavam tramando algo. Estavam inquietos, cheios de cochichos e sempre olhando para o rio, preocupados em Jaci poder estar correndo algum tipo de perigo.
            Hanahira retornou no meio da tarde do dia seguinte, ela trazia boas notícias:
            - Eu encontrei um ritual que pode libertar Jaci da maldição.
            - Nos conte! Qual é?
            - Temos que ir até o Oiapoque e realizar o ritual de purificação pelo fogo.
            - Oiapoque? O que é isso? – Perguntou Eva um pouco confusa.
            - Casa dos guerreiros? – Disse Ceci.
            - Isso mesmo! Temos que fazer o ritual em um Oiapoque.
            - Mas existe alguma casa de guerreiros aqui?
            - Claro, existiam muitas! – Respondeu Ceci orgulhosa.
            - Sim, eu tenho alguns estudos que sugerem que existia um lugar conhecido como Oiapoque aqui, bem perto da casa de vocês. Adentrando naquele pequeno arroio.
            - Onde?
            - Aquele cânion, aqui perto.
            - Mas aquele lugar é assustador, quem terá coragem de entrar lá? – Perguntou Sabu.
            - Nós Sabu! Se os índios guerreiros entraram é possível!
            Ao escurecer eles encontraram com Jaci e combinaram de encontra-lo no início do cânion no dia seguinte. Ensinaram-lhe o caminho, para que ele fosse durante a noite e ficasse escondido por lá, para não ser visto. Hanahira combinou com os tios das crianças que no dia seguinte gostaria de leva-los para um passeio, como seria domingo e as crianças estavam dispensadas das aulas, os tios concordaram. E assim aconteceu, no dia seguinte cedo partiram rumo ao cânion.
            No início ele não passava de um arroio, mas depois vai transformando em um impressionante cânion. Aquele “rasgo” na rocha revelava formas, cores e luzes diferentes. E ao meio dia o sol adentrou à fenda e produziu um grande espetáculo. O percurso se transformou em um pequeno caminho entre a água, com cerca de um metro e meio de largura, cercado por dois imensos paredões, um de cada lado. O nível da água estava alto e eles precisaram se esforçar, para vencer as forças das águas e avançar. Eva quase teve uma parada cardíaca, quando percebeu, nadando a seu lado uma enorme cobra d’agua. Aquele era um lugar selvagem e desde o episódio de Sabu com a Jararaca, ele tinha desenvolvido um enorme medo daquele tipo de réptil, mas a cobra não estava nem ai para a presença de Eva, só queria seguir seu caminho.
            Quando passaram essa etapa, que parecia uma prova de persistência, o prêmio foi uma pequena cachoeira que se formava com as águas que desciam por uma das encostas do cânion. Hanahira encantada disse:
- Como é que a natureza constrói locais tão espetaculares?
- Bom a Senhorita Bernard nos diria que de uma forma geral cânions são vales profundos com encostas quase verticais, que podem se estender por centenas de quilômetros e atingir até 5 mil metros de profundidade.
- Sim, a professora de vocês é uma pessoa bem formal! – Disse Hanahira rindo.
- É, mas ela está certa, esses locais que parecem terem sido criados por engenheiros na verdade são criados através da ação da água, do vento...
- É mesmo um lugar maravilhoso, tomara que ele ajude a me livrar dessa maldição – Disse Jaci.
- É chega de conversa! Vamos agir! Crianças, me ajudem a encontrar madeiras secas, para fazermos uma grande fogueira.
As crianças foram catar madeira, colocando-as em cima de uma grande rocha plana, que parecia uma espécie de altar. Lá Hanahira organizou as madeiras, empilhando-as em forma de um círculo. Então ela tirou de dentro da bolsa um grande pedaço de madeira, com alguns símbolos indígenas nele. Pediu também para as crianças e Jaci encontrassem cada um, um pau das mesmas dimensões daquele. Entregou a cada um deles um pequeno chocalho, feito de pequenos catutos com arroz dentro.
A bruxa ensinou-lhes uma música em tupi, pediu para que eles a cantassem do fundo do coração, sempre referenciando a natureza, a água, os animais, os guerreiros justos.
Ela disse então que o ritual iria começar.
Chamou Jaci, passou a mão carinho em seu rosto, dizendo baixinho algumas palavras que Eva não conseguia entender. Começou a espalhar uma mistura de óleos em seu corpo, sempre entoando as misteriosas palavras. As crianças assistiam a tudo arregaladas, aguardando o momento de serem chamadas. Com um olhar, as crianças entenderam que era o momento de iniciarem o canto em tupi. Que falava em coisas como perudá, Coaraci, tajuba, fazendo referências ao amor, a importância do sol e do ritual de purificação pelo fogo. A dança era compassada pelos chocalhos e por uma coreografia, alternada pela batida do pedaço de pau no chão. Aos poucos o canto foi ganhando força e Eva podia sentir o poder daquele ritual dentro do seu coração.
De repente o céu rompeu em um estouro tremendo de um trovão. As crianças olharam para Hanahira e ela mandou que continuassem. Começaram a cantar ainda mais alto. A bruxa pegou Jaci pela mão e o colocou no centro do círculo feito pelas lenhas para a fogueira, colocou fogo na ponta do seu pedaço de pau e ateou fogo na lenha. Para o espanto de Eva, mesmo debaixo da chuva a lenha incendiou. As crianças continuaram a cantar e dançar, quanto Hanahira berrava coisas sem sentido e jogava folhas e óleos no fogo. O fogo ficou negro. As crianças fecharam os olhos, sem parar de cantar, mas a curiosidade não os manteve fechados por muito tempo, quando reabriram o fogo estava alto e em um tom de vermelho sem igual, não era mais possível ver Jaci, apenas as labaredas. Elas começaram a ouvir os gritos de Jaci, que faziam eco junto com os de Hanahira no pequeno Cânion.
Hanahira abriu os braços e gritou três vezes a plenos pulmões:
- AWÊ-HE-HE – AWÊ, AWÊ.
- AWÊ-HE-HE – AWÊ, AWÊ.
- AWÊ-HE-HE – AWÊ, AWÊ!!!
Quando ela pronunciou a frase pela última vez, o céu emitiu um estouro e caiu dele um raio, junto a fogueira. O raio provocou uma onda de energia que jogou todos longe.
Ao se recuperar Eva abriu os olhos. Tinha parado de chover. Ela olhou para os lados e viu Sabú e Ceci também se levando. Mais à frente estava Hanahira ainda com os braços abertos e no lugar onde estava a fogueira, agora já sem fogo, estava Jaci, novamente com sua forma humana.
Jaci estava meio desorientado e se encolheu ao perceber que estava nu. Hanahira foi até ele e lhe entregou algumas roupas que havia trazido dentro da bolsa.
As crianças foram até eles:
- Não posso acreditar que deu certo! – Disse Ceci.
- Realmente, você é a maior bruxa que conheço, Hanahira! – Exclamou Eva – Vai ter que me ensinar a fazer isso também. – Como resposta recebeu apenas um sorriso da bruxa.
- Meu Deus, voltei a ser eu mesmo! Mal posso acreditar! Obrigado amigos! Nunca poderei agradecer o suficiente.
As crianças recolheram as coisas e retornaram para a casa dos tios. Após passarem pelo pedaço cheio de água do cânion, elas viram de longe um leão baio correndo. Eva encheu o coração de esperanças dele ser Katze, mas o bicho se assustou quando percebeu a presença humana, porém decidiram que passariam a chamar o pequeno cânion de Arroio Leão, em homenagem ao saudoso amigo felino.
Já em casa apresentaram Jaci como um amigo de Hanahira. Ele estava faminto e Tia Matilda ficou feliz em matar a fome do desconhecido, que não falava nem alemão, nem português.
No final da tarde ele e Hanahira partiram, Jaci estava decidido, agora que ele estava livre da maldição, ele partiria em busca de Alira. Hanahira, Eva, Ceci e Sabu já haviam se comprometido a ajudarem o novo amigo a viver o seu amor.




[1] A primeira parte da história “Bailão do Celso” é baseada no conto “O bailão do Nelson” que faz parte do Almanaque de Alfredo Wagner e também do imaginário do povo Alfredense, que até hoje conta sobre os fatos estranhos ocorridos no baile. A segunda parte é baseada no texto da aluna Emili Cardoso da Escola Básica Passo da Limeira, e fez parte do projeto “As aventuras de Eva Schneider” coordenado pela professora Charlene Silva Marioti no ano de 2017.

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