Essa é mais uma daquelas lendas não contadas, que
povoam imaginários férteis, cheios de ideias mirabolantes.
É a história de uma mulher, que viveu há milénios
atrás em uma Ilha chamada Irlanda, como as palavras em Gaélico do título já
revelavam.
Como quase toda bruxa, Aoife carrega consigo uma
terrível maldição.
Era uma vez...
Aoife era uma moça feia, daquelas feias por fora,
mas boas por dentro, mas diante de tanta feiura, ela só sabia reclamar da vida:
se era dia reclamava da claridade, se era noite, reclamava da escuridão. Mas
mesmo em meio a tantas reclamações a moça também sonhava. O sonho de sua vida
era ser linda e encontrar um bom homem para viver uma linda história de amor.
Certo dia, estava Aoife caminhando sozinha pela
mata, quando ouviu uma estranha voz vinda de dentro de uma caverna. Aoife achava que a voz se tratava de
Cerridwen, a poderosa Deusa Celta que representava a Lua e todas as suas fases.
Ela ficou assustada, não sabia como agir na
presença de uma deusa, mas resolveu prestar atenção no que a voz estava lhe
dizendo. A voz falava que ela poderia fazer qualquer pedido, poderia escolher entre
todas as coisas do mundo e ela atenderia.
Sem pensar duas vezes ela lançou seu pedido pelo
ar: - eu quero ser linda pela eternidade, quero todos os homens aos meus pés. Para
isso eu pago o preço que for necessário.
A misteriosa voz disse que atenderia seu pedido e
que o pagamento seria muito simples: ela se iluminaria em sua presença mais
majestosa e em suas outras fases teria a capacidade de ter todos os homens aos
seus pés, mas depois de consolidado o enlace, ela deveria lhes dar a liberdade,
para que eles voassem por onde bem desejassem.
Aoife aceitou as condições, ela nem cogitou não
aceitar, ser linda era tudo o que ela queria.
Como em um passe de mágica ela se transformou em
uma linda mulher, com um belo sorriso e cabelos negros feito uma noite sem
luar. Retornando para sua vila, todos ficaram deslumbrados com sua beleza, ela
parecia uma nova mulher, nem reclamar ela reclamava mais. Demorou apenas alguns
dias para ela ter vários homens a cortejando.
Isso logo despertou a inveja e o ciúme nas outras
mulheres, que não entendiam como que a feia Aoife tinha se transformado de
maneira tão drástica.
Mas o conto de fadas começou a desmoronar quando
na primeira lua cheia começaram a aparecer estranhos desenhos em seu corpo. Era
como se eles se aflorassem iluminados pela luz da lua. Eram estranhas formas e
símbolos, que para Aoife eram bonitos, mas para a maioria das pessoas aquilo
era prova de uma maldição. Marcas feitas por deuses malignos, como que marcando
que aquela mulher pertencia a eles.
Ela até tentou explicar que não eram deuses
malignos. Ela contou que havia tido um encontro com Cerridwen... mas quem iria
acreditar nela?
Ela passou a ser perseguida por todos e sua
família a expulsou de casa. Eles acreditavam que ela estava mesmo marcada pelo
mal. Aoife teve que fugir sem rumo e sua
vida se transformou em uma saga, passando de vilarejo em vilarejo e esperando o
ciclo da lua para ser expulsa, apedrejada e perseguida. A beleza a atrapalhava,
pois era difícil passar despercebida, onde quer que fosse. Ser bela havia se
transformado em um fardo. Ela resolveu que se isolaria na floresta. Nessas
alturas ela já havia passado a ser conhecida como Cailleach Aoife.
Os boatos da Cailleach já corriam feito o vento
pelos pequenos vilarejos da Irlanda e não demorou muito para que alguns homens
se reunissem para caçar e matar a bruxa. Em uma dessas investidas, ela foi
capturada.
O povo daquela vila a condenou à morte, prenderam
pedras em seu corpo, a colocaram dentro de um pequeno barco e a levaram para o
meio do mar. A água sempre foi o maior de seus medos então ela pensava que não
poderia haver para si uma morte mais cruel. Ela não sabia o que poderia ter
feito para merecer um destino tão terrível.
Eram três homens contra uma mulher frágil e com os
membros amarrados. Aoife em um ato de desespero, em sua tacada final, resolveu
usar a única arma que tinha, seu sorriso. Enquanto dois dos homens remavam para
encontrar o lugar perfeito para afogar a bruxa, o terceiro, um jovem ruivo e
forte, a vigiava. Primeiro ele parecia um pouco ressabiado, sem saber direito
como se comportar estando frente a frente com uma criatura do mal, mas aos
poucos o olhar de Aoife foi penetrando em seu olhar e dominando todo o seu
corpo. Era como se ela conseguisse entrar em sua cabeça e sem dizer uma palavra
conseguia se fazer entender. Não demorou muito para o jovem Shane empurrar seus
amigos dentro do mar, tomar os remos e sair remando em busca de um local onde
finalmente pudesse ficar a sós com a mulher que já passara a amar
desesperadamente.
O homem remou, remou e encontrou uma pequena
praia. Ele a pegou pela mão e subiram pelo penhasco. Foi uma subida árdua, mas
chegando lá, valeu a pena todo o esforço, o local era lindo. Ele contou que
estavam em Ballintoy. Eles se
beijaram, viram o pôr-do-sol e se amaram sob a luz da lua. Aoife pensava no
quão sortuda era por estar ali, ter escapado da morte e ter encontrado um homem
tão formidável feito Shane.
Aoife foi acordada por uma forte chuva, olhou para
o lado e não encontrou seu amado, apenas uma ave preta pousada a seu lado, que
assim como ela, ao acordar se assustou e saiu voando e gritando pelo ar: crow,
crow, crow”.
Que bicho era aquele? Onde estava Shane? Ele teria
a abandonado?
Ela procurou por Shane, depois por um abrigo, mas
não encontrou nenhum dos dois. Desceu até a praia em meio à chuva e ao vento e constatou que o
barco não estava mais lá. O homem havia a abandonado sozinha por ali.
E assim foram se passando dias, meses de solidão e
dor por ter sido abandonada e estar presa naquele local remoto.
Em uma noite Aoife ouviu vozes vindas da praia.
Era uma noite de lua cheia, então não era prudente se aproximar. Ela observou
de longe alguns homens reunidos na praia, pareciam náufragos, sem dúvidas eles
podiam ajudar.
Ela esperou o dia seguinte e então apareceu para
eles, que contaram que eram pescadores e foram pegos por uma tempestade, seu
barco tinha naufragado e eles vindo parar naquela ilha. Eles estavam se
preparando para sair dali nadando, falaram que poderiam levar Aoife com eles,
mas ela falou que não os acompanharia, pois não conseguia nadar.
Um dos homens, provavelmente seduzido pela beleza
da mulher, disse que ficaria com ela e encontraria uma maneira de tirá-la da
ilha sem ser pela água. Os seus amigos acharam estranho a atitude do homem,
tentaram argumentar, mas não conseguindo, deixaram o homem para trás.
Aoife e Ciaran, seu novo amigo, andaram por toda a
extensão da ilha, procurando por uma maneira dela sair dali, mas não
encontraram nada. Então o homem resolveu que iria construir uma ponte que
ligaria o alto dos dois penhascos e assim eles conseguiriam ir para a ilha
principal, ficariam livres. Eles trabalharam arduamente e uma ponte pênsil que
passava por cima foi construída.
Aoife já havia superado Shane, o homem que a
abandonou e que não merecia seu amor, ela se sentia livre para viver uma nova
história, então passou a noite com o homem que tinha ficado para lhe salvar.
Mas ao acordar no dia seguinte, havia outra ave preta dormindo ao seu lado.
- Crow, crow, crow. – Foi o som que a ave emitiu
ao levantar voo.
Ela havia sido abandonada mais uma vez.
Mas, dessa vez ela resolveu não lamentar, decidiu
que iria cruzar a ponte e ir viver em outro local. Aoife estava se sentindo
decidida a enfrentar seus medos e viver sua vida, independentemente dos
desafios que iria encontrar pela frente.
Mas no caminho, ela encontrou o grupo de amigos
Ciaran, acompanhados por um dos homens que estava no barco que Shane havia
jogado no mar. Ele havia contado a eles que ela se tratava da Cailleach Aoife,
e que provavelmente tinha matado os dois homens.
Então eles a pegaram, bateram nela com pedaços de
madeira e fizeram coisas terríveis com ela até o dia amanhecer. Quando ela
acordou no dia seguinte, estava cercada por aves negras.
Agora tudo fazia sentido em sua cabeça. Ela não
havia sido abandonada por Shane e Ciaran. Eles haviam se transformado em corvos.
Esse era o preço que Cerridwen cobraria por toda a beleza que lhe dera.
Aoife agora estava amargurada, mas queria
vingança. Traçou seu plano.
Ela iria continuar
vivendo em Ballintoy e toda noite
colocaria sua vingança em prática. Ela sairia da ilha pela ponte, e se vingaria
de todos os homens que pudesse, os seduzindo a fazendo-os virar corvos.
E assim ela o fez, dia após dia ela procurava sua vítima. Ela
aperfeiçoou suas técnicas de sedução e geralmente escolhia homens maus, que
tratavam mal suas esposas, seus filhos ou que gostavam de fazer coisas ruins
para os outros. Cailleach Aoife se tornou uma espécie de vingadora
e vem cumprindo sua saga há milênios, já que sua beleza, assim como sua vida é
eterna.
Dizem que essa é a origem de todos os corvos vistos na
Irlanda, de norte à sul. Todos eles são homens que Aoife
transformou em corvos.
Dizem também que ela vive até hoje e que se você
tiver sorte – ou azar – pode cruzar com ela, com seu corpo coberto de tatuagens
em algum pub da Irlanda.
Fim.
1 Comentários
Sensacional! Consegui sentir o clima todo!
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